Público - 11.09.2019

(Jacob Rumans) #1

16 • Público • Quarta-feira, 11 de Setembro de 2019


POLÍTICA


Opinião


Luís Reis Torgal


Um historiador ou até um simples
cidadão deve ler a História através
dos seus documentos. Caso
contrário, a História transforma-se
em “Estória”. Apresento esta ideia
indiscutível porque se fala
constantemente de um “Museu
Salazar” em vários artigos de
opinião, petições públicas e até
textos e desenhos humorísticos.
Todavia, pergunto: quem falou,
responsavelmente, alguma vez, de
um “Museu Salazar”? Mais
precisamente, quem disse que se
pretendia fazer um “museu” para
digniÆcar a Ægura do “chefe” do
autoritário, se não totalitário,
sistema político conhecido por
Estado Novo?
O que leio no primeiro texto do
presidente da Câmara de Santa
Comba Dão é que, depois de
concluídas as obras da antiga escola
do Vimieiro (“antigo e icónico
equipamento escolar”), se vão
apresentar ali “serviços multimédia
e exposições temporárias, servindo
de alavanca para a musealização de
todo o espaço”. Esse espaço
intitular-se-ia Centro Interpretativo
do Estado Novo (CIEN). E o
presidente Leonel Gouveia diz
explicitamente: “Este será um local
para o estudo do Estado Novo e
nunca um santuário para
nacionalistas”. Esclareceu ainda:
“De modo algum se pretende
contribuir para a sacramentalização
ou diabolização da Ægura do
estadista. Pretende-se, apenas e só,
fazer um levantamento cientíÆco e
histórico de um regime político,
enquanto acontecimento actual”. E
acrescentou que esse espaço teria a
colaboração cientíÆca do Centro de
Estudos Interdisciplinares do
Século XX da Universidade de
Coimbra (CEIS20), citando o nome
do seu actual coordenador, António
Rochette, de João Paulo Avelãs
Nunes (professor da Faculdade de
Letras, autor de uma tese de
doutoramento sobre o Estado Novo
e o volfrâmio e verdadeiro motor do
projecto) e a minha pessoa (que


dediquei muitos anos ao estudo do
sistema salazarista e que, entre
outras obras e artigos, sou autor do
livro Estados Novos, Estado Novo, e
por isso deveria fazer parte de uma
equipa de conselheiros). Ainda o
presidente de câmara aÆrma que
este será apenas um dos pólos da
região a ser contemplado no
“Projecto alargado da Rota das
Figuras Históricas”.
Se os muitos plumitivos que
escreveram sobre o tema tivessem
perguntado ao CEIS20, ou a alguns
dos seus membros, poderiam ainda
detalhar que as unidades
museológicas que desejam abordar
“Æguras históricas” (e espaços e
períodos históricos) a que se refere
o presidente da câmara seriam ou
pretendem vir a ser: um “Centro de
Interpretação da Primeira
República/Casa-Museu de António
José de Almeida”, em Vale da Vinha
(S. Pedro de Alva — Penacova); a
musealização da casa de Aristides
de Sousa Mendes, há tanto tempo
projectada e adiada, em Cabanas de
Viriato (Carregal do Sal); um centro
memorial a Afonso Costa, em Seia;
um centro de interpretação dos
espaços sanatoriais de
antituberculose no Caramulo
(Tondela); o referido Centro
Interpretativo do Estado Novo em
Vimieiro, Santa Comba Dão; e ainda
— se possível — vir a propor e a
apoiar a formação de espaços de
memória referentes a Tomaz da
Fonseca, em Mortágua, e às Æguras
de Alberto Veiga Simões, Alberto
Moura Pinto e Fernando Vale, em
Arganil.
Obviamente que quem lida com a
História com rigor e objectividade,
utilizando os documentos (de toda a
espécie), jamais seria capaz de criar
um museu hagiológico sobre
Salazar. E nem sequer se deve aludir
à falta de fontes museológicas,
porque, a par daquelas que existem
em Santa Comba, há inúmeros
meios para falar com complexidade
da história do Estado Novo, Estado
“fascista à portuguesa” (como
correntemente lhe chamo),
“fascismo sem movimento fascista”
(como o apelidou o sociólogo
Manuel de Lucena), “fascismo de
cátedra” (designação de um notável
artigo do Ælósofo Miguel Unamuno)
ou Estado essencialmente
repressivo, com a “arte de saber
durar”, como têm provado os meus

Francisco Bethencourt, em artigo
do PÚBLICO, falou do renascimento
da extrema-direita (que a todos
preocupa), aproveitando — parece
que vem sempre ao de cimo a
“Æcção” — para falar também do
“Museu Salazar”! A este propósito
diz que “meia dúzia de objectos
pessoais de um ditador não
qualiÆcam [...] um problema
político grave”. Deveria, na
qualidade de historiador, ao menos,
conhecer melhor os documentos,
para se aperceber o que, na
verdade, se pretenderá realizar. E
acrescenta: “Na Alemanha ninguém
se atreveria a propor um museu de
Hitler ou em Itália um museu de
Mussolini; seria claramente
anticonstitucional”. É certo que é
assim, mas não deixa de ser curioso
que a casa de Mussolini em
Predappio tenha sido restaurada
pela Comuna para ali se realizarem
exposições temporárias, algumas
sobre temas do fascismo. Quanto a
Hitler, a casa onde nasceu, em
Braunau am Inn (na Áustria),
também se encontra de pé e bem
conservada, sem qualquer sentido
museológico, mas foi restaurado o
“Ninho da Águia” nos Alpes
bávaros, sem que isso fosse
considerado uma aÆrmação
anticonstitucional e neonazi. E,
deve notar-se que, além dos campos

de concentração serem excelentes
museus para se entender o
Holocausto e por ele manifestar o
horror, a Alemanha aceitou
transformar o que resta do Palácio
de Congressos de Nuremberga,
onde se realizaram os tristemente
famosos encontros do Partido Nazi,
num moderno centro de
documentação, onde se recorda o
triste passado hitleriano e se abre
sobretudo a jovens estudantes, para
que não mais se esqueçam dessa
história terrível.
Esteja certo, Francisco
Bethencourt, que se algo surgir no
Vimieiro, terá a forma e o conteúdo
de um dos museus que pretende:
um projecto “de reÇexão sobre
património, história e civilização”.
Se aparecer alguma vez a ideia de se
constituir um “Museu Salazar”,
como refere, os investigadores do
CEIS20 recusarão essa ideologia
anticientíÆca — como eu recusei em
tempos idos —, assim como
recusarão qualquer projecto
hagiográÆco relativamente a alguma
outra Ægura da história. O papel do
historiador é sempre desmistiÆcar
através do uso de documentos, não
mais permitindo que a História se
transforme em “Estória”.

Sobre o alegado “Museu Salazar”:


a História e os seus documentos


Obviamente que


quem lida com a


história com rigor
e objectividade,

utilizando os


documentos (de


toda a espécie),
jamais seria capaz

de criar um museu


hagiológico sobre


Salazar


ADRIANO MIRANDA

Fundador do CEIS20 e professor
catedrático aposentado

colegas Fernando Rosas e Irene
Pimentel. Pode recorrer-se — como
se sabe — aos mais diversos meios
museológicos, como tem
experimentado o Museu do Aljube.
E já não falo do que se poderá vir a
fazer no Forte de Peniche (em cuja
musealização o CEIS20 tem
colaborado, através de Avelãs
Nunes) ou, em Cabo Verde, no
Tarrafal (Santiago), em que os
museólogos cabo-verdianos e
portugueses poderiam fazer muito
mais do que está feito.
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