Público - 11.09.2019

(Jacob Rumans) #1

32 • Público • Quarta-feira, 11 de Setembro de 2019


CIÊNCIA


Descoberta enguia com a maior


descarga eléctrica de um ser vivo


Até aqui, pensava-se que existia ape-
nas uma espécie de enguia-eléctrica,
a Electrophorus electricus, e que se
distribuía por toda a Amazónia. No
entanto, um estudo publicado ontem
na revista Nature Communications
demonstra que existem três espécies
e que se concentram em diferentes
regiões da Çoresta tropical. A Elec-
trophorus voltai, uma das espécies
descobertas, é capaz de produzir
uma descarga eléctrica que pode
atingir os 860 volts, a maior descarga
gerada por um ser vivo.
A espécie Electrophorus electricus
encontra-se sobretudo no escudo
das Guianas, um planalto que abran-
ge o Sul da Venezuela, a Guiana, a
Guiana Francesa, o Suriname e o
Norte do Brasil. Já a Electrophorus
voltai habita sobretudo no escudo
brasileiro, planalto situado um pou-
co mais a sul do escudo das Guianas.
A outra espécie descoberta, a Elec-
trophorus varii, aparece em maior


AÄnal, existem três espécies de enguias-eléctricas, e não uma só, e uma delas consegue fazer descargas


de 860 volts. Encontram-se na Amazónia, incluindo o Brasil, e noutros países da América do Sul


sado comum das espécies E. electri-
cus e E. voltai e vivia em áreas de
relevo mais elevado. O outro grupo
é o antepassado da espécie E. varii e
habitava zonas de planície.
A divergência entre a E. electricus
e a E. voltai terá começado aproxi-
madamente há 3,6 milhões de anos,
altura em que o curso do rio Amazo-
nas adoptou o rumo actual e passou
a Çuir entre o escudo das Guianas e

o planalto brasileiro. A elevada vol-
tagem das descargas eléctricas de
ambas as espécies pode ser uma
adaptação à baixa condutividade
eléctrica dos aÇuentes do rio em
regiões de relevo elevado. Em con-
trapartida, as águas que circulam nas
planícies da Amazónia, onde vive a
E. varii, contêm minerais que favo-
recem a condução da electricidade.
Carlos David de Santana, em
comunicado da sua instituição, subli-
nha também que a sequenciação
total do genoma das três espécies no
futuro e a sua comparação poderá
fornecer novas pistas sobre a origem
das descargas eléctricas. Uma vez
que as três espécies divergiram há
milhões de anos, a electrogénese —
produção de electricidade por meio
dos tecidos vivos — das enguias pode
ter evoluído de forma distinta. “É
possível que tenha diferentes enzi-
mas ou componentes que podem ser
utilizadas na medicina ou servir de
inspiração a novas tecnologias”, diz
o investigador.
Existem na América Central e do Sul
250 espécies de peixe capazes de gerar
choques eléctricos, que os utilizam
para comunicar e navegar. As enguias-
eléctricas, que também recorrem às
descargas eléctricas para a comunica-
ção e navegação, são os únicos que
usam esse mecanismo para caçar e se
defenderem. Podem atingir os 2,5
metros de comprimento.
A E. electricus foi descrita em 1766,
pelo naturalista sueco Carlos Lineu.
“A identiÆcação de duas espécies
novas de enguias-eléctricas revela o
quanto está por descobrir na Çoresta
tropical da Amazónia”, destaca ago-
ra Carlos David de Santana.
Perguntámos-lhe como tem olha-
do para os incêndios brutais dos últi-
mos tempos na Amazónia: “É deso-
lador ver o que está a acontecer na
Amazónia”, responde, destacando a
importância de preservar a biodiver-
sidade. “Temos de ter presente que
ainda só descobrimos uma pequena
porção de toda a biodiversidade
(entre um e 10%). Queimar focos de
biodiversidade como a Amazónia é
como queimar uma biblioteca mun-
dial sem saber 90% do conteúdo dos
livros que contém.” Texto editado
por Teresa Firmino

lago. Essa descrição era vista como
uma lenda, até que em 2016 uma
equipa norte-americana observou
realmente este tipo de comporta-
mento em laboratório e publicou os
resultados na revista Proceedings of
the National Academy of Sciences.
Os investigadores recolheram 107
enguias-eléctricas ao longo dos últi-
mos seis anos no Brasil, na Guiana
Francesa, no Suriname e na Guiana.
Foram feitas análises de ADN, da
morfologia e da distribuição geográ-
Æca e medida a voltagem da descarga
eléctrica dos animais. Carlos David
de Santana e a sua equipa descobri-
ram diferenças na forma do crânio,
nas barbatanas peitorais e no arranjo
dos poros que cada espécie possui.

Preservar a biodiversidade
A partir das comparações genéticas,
os investigadores concluíram que os
antepassados das enguias-eléctricas
surgiram na América do Sul há cerca
de dez milhões de anos. Há 7,1
milhões de anos, começaram a evo-
luir dois grupos de enguias-eléctri-
cas. Um desses grupos é o antepas-

Biologia


André M. Nóbrega


Queimar a


Amazónia é


como queimar
uma biblioteca

mundial sem saber


90% do conteúdo


Carlos David de Santana
Investigador

número nas planícies da bacia do rio
Amazonas.
“As mortes causadas por enguias-
-eléctricas em seres humanos são
raras, devido aos baixos níveis de
corrente (um ampere) e à curta
duração [da descarga eléctrica]”,
explica ao PÚBLICO Carlos David de
Santana, cientista brasileiro do
Museu Nacional de História Natural
do Instituição Smithsonian, em
Washington, e coordenador da
investigação. “Ainda assim, o cho-
que causa a contracção involuntária
dos músculos e uma sensação de
entorpecimento dolorosa, efeitos
que podem ser comparados aos de
um taser utilizados pelas autorida-
des”, completa Santana. A espécie
E. voltai pode tornar-se mais perigo-
sa quando, em algumas partes do
ano, forma cardumes. “Se uma
começa a descarregar, todas as
outras o fazem em simultâneo.”
Em 1800, o naturalista alemão Ale-
xander von Humboldt descreveu um
ataque de enguias-eléctricas, que
saltavam para atingir os cavalos da
expedição, quando atravessavam um
E. KAUANO

A enguia-eléctrica Electrophorus voltai, que dá choques eléctricos de 860 volts; e o investigador brasileiro Carlos David de Santana


LEANDRO SOUSA
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