Público - 11.09.2019

(Jacob Rumans) #1

36 • Público • Quarta-feira, 11 de Setembro de 2019


CULTURA


No Baile Brega, a língua portuguesa


“não é uma coisa só”


JOÃO PÁDUA

Prov(oc)a(ção) Pública, de Dori Nigro: lugar a um corpo negro, brasileiro e imigrante em Portugal

Performance, música, espectáculos
de drag, dança, teatro, karaoke,
stand-up comedy, literatura, videoar-
te — a partir de hoje, e até dia 21, a
garagem do Auditório Municipal de
Gaia acolhe o Baile Brega, um show
de variedades que propõe olhar a
produção artística portuguesa de
uma perspectiva pluralista e inter-
seccional, lúdica e política.
Programado pelo artista, investi-
gador e curador Rogério Nuno Costa,
o Baile Brega é um novo eixo de pro-
gramação do Fórum Internacional
de Gaia, “uma festa da cidadania”
cuja terceira edição decorre até dia
22 com um programa dedicado ao
pensamento e às artes, ancorado “no
tema da colaboração em português”,
explica Ana Carvalho, responsável
pela direcção artística do fórum.
Sendo a língua portuguesa e a luso-
fonia questões estruturantes da pro-
gramação artística deste ano, o Baile
Brega quer problematizá-las: como
escreveu a artista e escritora Gisela
Casimiro, uma das convidadas deste
baile (sexta-feira, dia 20), a propósito
do trabalho de Grada Kilomba, “a
língua portuguesa é uma língua mui-
to colonial e muito patriarcal, e o nos-
so discurso de que é a língua mais
bela, mais doce, idem”. Um dos objec-
tivos do programa, que conta com
vários criadores negros e afrodescen-
dentes, é estimular uma perspectiva
crítica e politizada sobre o português,
“língua que foi imposta” aos povos e
países colonizados por Portugal, assi-
nala Rogério Nuno Costa.
“Este programa vai revelar quais
são as várias formas de comunicar
através de uma língua comum, mas
essa língua comum é tudo menos
uma coisa só. Temos muitos dialec-
tos, sotaques, gírias, crioulos,
inÇuências”, nota o programador,
lembrando que muitos desses dialec-
tos são ainda hoje estigmatizados e
marginalizados. “O meu maior
motor para o Baile Brega foi ter o
maior número possível de visões e
perspectivas em relação ao que é a
língua e como a podemos trabalhar.”
Essa dimensão reÇecte-se também


na língua portuguesa, para ver na
noite de encerramento.
Ainda numa perspectiva transdis-
ciplinar, e no que toca a criadores
que não se querem inscrever numa
só área artística, o Baile Brega deu
carta branca ao colectivo lisboeta de
performance/música/clubbing
Rabbit Hole (sábado, 14) e apresenta,
a 19, a performance PROV(oc)A(ção)
PÚBLICA, do brasileiro Dori Nigro,
que reÇecte sobre a linguagem
enquanto “um dos objectos princi-
pais de toda a narrativa e opressões
racistas”, na sua condição “de cor-
po negro, brasileiro e imigrante em
Portugal”, enquadra Rogério Nuno
Costa.
Por esta “garagem de estar” remo-
delada e cenografada pelo artista
visual Paulo Mendes que pretende
ser o ponto de encontro dos artistas
e espectadores do fórum a partir das
22h30, vão passar também músicos
e DJ que têm nutrido os circuitos
independentes do Porto e de Lisboa,
entre eles a artista e produtora Ode-
te, que traz o novo e excelente disco
Amarração, os rappers Genes e J-K e
os DJ Peter Castro, Chima Hiro ou
Puto Anderson. Sem esquecer a pre-
sença, na última noite, de uma das
duplas mais badaladas do momento,
o Fado Bicha, que recentemente co-
criou o hino-música-de-intervenção
da campanha do Livre.
Fora do Baile Brega, a programa-
ção artística da terceira edição do
Fórum Internacional de Gaia conta
o lançamento, já hoje, da antologia
de poesia lusófona Língua de Sal,
“que serve de base a uma série de
projectos que se estendem ao longo
do fórum”, destaca Ana Carvalho.
Nos próximos dias há o concerto da
cantora, compositora e activista anti-
racista brasileira Bia Ferreira, o
espectáculo Antes, do Teatro Praga,
as performances A Rapariga Mand-
jako (com Joãozinho da Costa) e Medo
a Caminho (com Luís Mucauro), de
Rui Catalão, uma conversa com a
escritora Djaimilia Pereira de Almei-
da ou as performances de Vanessa
Fernandes e AF Diaphra no âmbito
do programa Língua Franca, onde se
cruzam a performance, as artes
visuais, a literatura e os estudos pós-
coloniais.

Inserido na terceira edição do Fórum Internacional de Gaia, que arranca hoje, há um programa que quer


problematizar a língua portuguesa e a lusofonia através de um alinhamento plural e multidisciplinar


Língua portuguesa


Mariana Duarte


ta Rogério Nuno Costa. “Interessou-
-me procurar pessoas que merecem
ter mais visibilidade, não só do ponto
de vista das práticas que desenvolvem
mas também de como essas práticas
existem e quem tem acesso a elas.”
Seguindo essa lógica da “não-nor-
matividade”, numa programação
que procura “promover um safe spa-
ce inclusivo, experimental e plurilin-
guístico”, o Baile Brega integra mani-
festações e contextos artísticos que
“as pessoas não costumam colocar
na caixinha das artes performativas”,
apesar de estes serem intrinseca-
mente performáticos. Exemplo disso
são os shows das drag queens Sylvia
Koonz, Lola Herself e Babaya
Samambaia, as vencedoras das três
edições do concurso Miss Drag Lis-
boa, que sobe pela primeira vez ao
Norte no dia 18; a sessão de karaoke
da performer e actriz João Abreu (“é
algo que também trabalha a ideia de
língua: como podemos cantar can-
ções que não são nossas lendo as
letras”), a 19; ou o espectáculo de
stand-up comedy do humorista e car-
tunista Hugo van der Ding inspirado

abordassem a questão da língua nos
seus trabalhos e desaÆou, nesse sen-
tido, “quem não o estivesse a fazer”.
Isso resulta em várias apresentações
inéditas, como a do colectivo Silly
Season; da performer e matemática
Telma João Santos; da actriz de tea-
tro e cinema Cleo Tavares, cuja per-
formance estará relacionada com
Aurora Negra, espectáculo em co-
criação com Isabél Zuaa e Nádia Yra-
cema a estrear no Teatro Nacional D.
Maria II em 2020; ou a do coreógra-
fo Miguel Pereira, que esta sexta-fei-
ra mostra uma peça construída a
partir de uma canção num dialecto
moçambicano, em ligação ao país
onde nasceu.

À margem
Outro dos objectivos do programa é
dar espaço tanto a artistas estabeleci-
dos como a criadores à margem dos
circuitos mais institucionais. “Existe
uma procura de linguagens mais mar-
ginais, no sentido de fugirem à norma
ou à narrativa instituída. Há artistas
que não encontramos nos grandes
teatros e nos grandes festivais”, apon-

Esta língua comum
é tudo menos uma

coisa só. Temos


muitos dialectos,


sotaques, gírias,
crioulos,

inÅuências


Rogério Nuno Costa
Programador do Baile Brega

na multiplicidade de linguagens
artísticas que se cruzam e dialogam
em cada uma das oito noites do Bai-
le Brega, questionando como “se usa
a palavra” e “se fala a língua através
da performance, da dança ou da
spoken word”.
De modo a cumprir a linha temá-
tica desta edição do fórum, Rogério
Nuno Costa convocou artistas que
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