Público - 11.09.2019

(Jacob Rumans) #1
Público • Quarta-feira, 11 de Setembro de 2019 • 9

ESPAÇO PÚBLICO


é política: é o medo da China do contágio dos
ideais democráticos. Ou seja, o que se joga,
hoje, em Hong Kong é uma luta entre o
modelo liberal e o modelo autocrático.
Neste contexto, o que podem fazer as
democracias ocidentais? Não muito. Mas,
ainda assim, o pouco que podem fazer pode
ser importante. Primeiro, um gesto simbólico
para com os manifestantes. IdentiÆcadas com
os seus ideais e solidárias com os valores que
defendem, as democracias liberais não
podem deixar de mostrar simpatia pela sua
causa e admiração pela sua coragem. Mas não
podem nem devem encorajar a radicalização
do protesto, muito menos se for violento. Isso
seria, como diz Godement, “um suicídio
assistido” perante o qual o Ocidente não seria
mais que um espectador. Pelo contrário,
incitar ao diálogo com as autoridades de Hong
Kong na procura de uma solução política.
Segundo, uma solução política deve ser
também a mensagem, Ærme, para o Governo
chinês: a procura de uma solução que evite a
violência e a repressão e respeite,
integralmente, a autonomia do território. Mas
vale também
recordar ao Governo
chinês que o estatuto
de Hong Kong como
membro da
Organização Mundial
de Comércio,
território aduaneiro
distinto e plataforma
de ligação Ænanceira
entre a China e a
economia
internacional,
depende
precisamente do
estatuto de
autonomia de Hong
Kong.
Finalmente, para
além desse
imperativo ético de
apoio simbólico aos
democratas de Hong
Kong e de pressão
diplomática sobre o
Governo chinês, as democracias ocidentais
não podem esquecer a alternativa política que
se lhes depara no plano internacional: entre o
modelo autocrático e o modelo liberal. E não
podem deixar de proteger os seus princípios e
valores. Sabemos todos que a política
internacional se faz com interesses. Mas
aqueles que esquecem os seus valores no
exercício da política acabam sempre, mais
cedo ou mais tarde, por prejudicar os seus
próprios interesses.

Professor catedrático da Universidade
Nova de Lisboa. Visiting professor
Georgetown University

Nuno Severiano Teixeira


Hong Kong


H


á três meses consecutivos que
milhões de pessoas, sobretudo
jovens, se manifestam em Hong
Kong em luta pela democracia.
Enquanto no Ocidente grassa uma
vaga autocratização iliberal, em
Hong Kong luta-se pela
democracia liberal. Luta-se pelos
valores que no Ocidente parecem
estar em crise. E luta-se,
sobretudo, contra o tempo.
Porquê? Porque, em 1984, o Governo
Margareth Tatcher assinou com o Governo de
Deng Xiaoping uma declaração conjunta que
previa o Æm do regime colonial e o regresso
do território à China, em 1997. Constituiria
uma região administrativa especial com larga
autonomia e mantendo os princípios da sua
organização económica e política, incluindo
um poder executivo, legislativo e judicial
independente, por um período de 50 anos.
Isto é, até 2047. Mas o entendimento na China
e em Hong Kong sobre a transição
democrática nunca foi o mesmo e os limites
da autonomia foram sempre objecto de
tensão. Tensão no centro da qual sempre
esteve uma questão política: a lei eleitoral.
Isto é, o sufrágio directo e universal dos
eleitores e o controlo da nomeação do chefe
do executivo. Princípios sempre disputados,
mas nunca aceites pela China. Por outro lado,
o tempo não para e, 22 anos depois, o prazo
começa a aproximar-se do Æm. Não é por
acaso que a esmagadora maioria dos
manifestantes são jovens. É porque são eles
que viverão a maior parte das suas vidas
depois de 2047. E também não é por acaso
que escolheram o aeroporto para se
manifestar. É porque sabem que, se não
tiverem um passaporte estrangeiro, sair de
Hong Kong, depois dessa data, será mais
difícil e temem que a sua liberdade termine
ali. O que no princípio parecia ser uma mera
questão jurídica sobre uma lei da extradição
era, aÆnal, muito mais do que isso e acabou
por revelar aquela que é a verdadeira questão
política: o sufrágio universal. Era já isso que
estava em causa na revolução dos
guarda-chuvas, em 2014, e é isso que está em
causa ainda hoje: a democracia. Visto do lado
dos manifestantes de Hong Kong, com o
prazo a esgotar-se, e cada vez mais cidadãos a
identiÆcarem-se como “hongkongers” e não
como chineses (apenas 11% se identiÆcam
como chineses numa sondagem da
Universidade de Hong Kong), o medo é o de
perder a autonomia e, portanto, a liberdade e
a democracia. Visto do lado do Governo
chinês, isto é, do Partido Comunista, a
questão não é a do peso económico de Hong
Kong. (Em 1997, representava 20% do PIB
chinês, hoje apenas 3%). A verdadeira questão

O estatuto de
Hong Kong
como membro
da Organização
Mundial de
Comércio
depende do
estatuto de
autonomia

democracia. Não sou capaz de encontrar uma
formulação abstracta válida para resolver
todas as diÆculdades, mas tendo a achar que a
solução legal pode não ser a melhor, pelo
menos em casos limite, em que o valor da
conÆança é posto em crise de forma mais
nítida. Por mais boas razões formais-legais que
existam, o critério da percepção média da
pessoa razoável, informada e de boa-fé diz-nos
que um juiz suspeito de crimes graves,
sobretudo se forem manifestamente
incompatíveis com a dignidade da função,
poder continuar a trabalhar nos tribunais, até
pode estar certo, mas certamente não parece.
Talvez se pudesse encontrar melhor
mecanismo para equilibrar os interesses em
jogo, sem comprimir excessivamente os
direitos das pessoas acusadas. Como se sabe, o
Estatuto dos Magistrados Judiciais foi sujeito a
uma profunda revisão, que entrará em vigor
em 1 de Janeiro. As soluções que se
encontraram no longo período de discussão
pública foram as adequadas e necessárias, à
luz dos problemas que então se colocavam. A
única modiÆcação relevante nesta matéria —
aliás, com origem na proposta dos juízes que
integraram o grupo de trabalho criado pela
Ministra da Justiça em 2016 — será o
alargamento da
suspensão
automática de
funções de juízes
arguidos em
processos-crime que
sigam para
julgamento, que
passará a incluir os
casos de crimes
praticados fora do
exercício de funções,
desde que puníveis
com pena de prisão
superior a três anos.
No que respeita aos
requisitos e prazos de
suspensão preventiva
no âmbito do
processo disciplinar,
nada se vai alterar. O
que signiÆca que problemas desta natureza se
podem, infelizmente, repetir.
É verdade que o problema não é só com
juízes. Há questões semelhantes com os
titulares de cargos políticos — deputados,
membros do Governo, autarcas e outros — que
podem continuar em funções, mesmo depois
de acusados e por vezes até já condenados em
primeira instância. Para esses, os mecanismos
de moralização da função são de longe mais
insipientes. Porém, serve de pouco consolo
ver uma coisa mal e dizer que ainda há pior.

Manuel Soares


Entre o ser


e o parecer certo


“A


conÆança demora anos a
construir, segundos a perder e
uma eternidade a reparar.” Este
princípio é válido tanto no
relacionamento entre pessoas
como no relacionamento entre
pessoas e instituições. Nas
funções de autoridade pública,
como a Justiça, o valor da
conÆança é crítico porque a sua
legitimidade assenta mais no crédito atribuído
à imparcialidade, probidade e integridade
ética da acção, do que na força formal da lei.
São por isso legítimas as dúvidas que se
suscitam por juízes arguidos em processos
criminais, por factos alegadamente
relacionados com o exercício da função,
poderem continuar a trabalhar nos tribunais.
Assunto sério a merecer reÇexão.
Há quatro situações em que o juiz pode ser
suspenso da função antes de ser
deÆnitivamente condenado em
processo-crime ou disciplinar. Em primeiro
lugar, é o caso da aplicação da medida de
coacção de suspensão do exercício de função,
imposta por um juiz, no âmbito de um
processo-crime e sujeita aos apertados
requisitos de garantia, prazos e recursos
previstos para todos os arguidos. Depois, se o
processo respeitar a crime doloso praticado
no exercício da função, ainda que não tenha
sido aplicada medida de coacção, quando
seguir para julgamento (com uma acusação
deÆnitiva), o juiz Æca imediata e
automaticamente suspenso. Numa terceira
situação, se o processo respeitar a crime
doloso, mas praticado fora do exercício da
função, a suspensão não é automática e
dependerá de decisão do Conselho Superior
da Magistratura (CSM). Finalmente, na quarta
situação, já no âmbito do processo disciplinar,
conexo com o processo-crime mas dele
independente, o CSM pode suspender
preventivamente o juiz, quando a infracção
for punível com pena de transferência ou mais
grave e a continuidade em funções puder ser
prejudicial para a instrução do processo, para
o serviço ou para o prestígio e dignidade da
função. Esta suspensão preventiva não pode,
porém, exceder, no total, nove meses. Se por
qualquer razão o processo disciplinar não
terminar nesse prazo e o processo-crime
conexo não tiver chegado ao julgamento, o
juiz regressa aos tribunais para exercer a sua
função sem limitação.
Reconheço que não é fácil fazer um justo
balanceamento entre os valores contraditórios
aqui em jogo: dum lado, a presunção de
inocência e as garantias de defesa do
juiz-arguido, essenciais num Estado de direito,
e, do outro, a preservação da conÆança na
Justiça, que não é menos essencial numa

Nas funções
de autoridade
pública, como
a Justiça, o
valor da
confiança
é crítico

Presidente da direcção da Associação
Sindical dos Juízes Portugueses.
Escreve quinzenalmente à quarta-feira

é crítico

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