Exame - Edição 1180 (2019-03-06)

(Antfer) #1
6 de março de 2019 | 41

J.R. GUZZO

VIDA


REAL


O Brasil de nossos dias realmente levou ao estado de arte,
como se diz, a capacidade que as classes superiores desenvol-
veram nestes últimos tempos de transformar questões de de-
simportância ilimitada em motivo para discussões de altíssima
tensão, nas quais se debate, desesperadamente, o destino final
de tudo o que pode haver de essencial na existência humana.
A mulher do empresário Nizan Guanaes, por exemplo, cometeu
ou não crime de racismo ao utilizar os serviços profissionais de
negras vestidas com o traje clássico de baianas em sua recente
festa de aniversário em Salvador? Quais os segredos de vida e
morte que o ex-ministro Gustavo Bebianno, do qual nenhum
cidadão comum jamais tinha ouvido falar até hoje, vai enfim
“contar para todo mundo” — e provocar com isso a autodestrui-
ção imediata do governo? O vice-presidente da República, ge-
neral Hamilton Mourão, já está marcando reuniões secretas
com a CUT, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil e o
ex-presidente Fernando Henrique para acertar os detalhes finais
do golpe de Estado que vai derrubar, a qualquer horinha dessas,
o presidente Jair Bolsonaro? Viram o que saiu publicado na
coluna do colunista A? E o que saiu publicado na coluna do
colunista Z? Com a crise cada vez mais grave, quantos meses
ainda pode durar este governo? E por aí vai.
Nenhum desses portentos tem a mais remota possibilidade
de resultar em qualquer tipo de coisa relevante, é claro, mas
cada um deles faz um barulho danado até evaporar do noticiá-
rio, para dar lugar a outros vendavais da mesma qualidade.
Aguarde a qualquer momento, portanto, mais uma crise fatal
em Brasília — ou melhor, mais um “desdobramento” da crise
que se instalou no governo desde o dia 1o de janeiro deste ano
e até agora não foi embora. Já ouvimos, entre outras desgraças


garantidas, que o presidente jamais conseguiria montar seu
ministério sem entregar a alma e o Erário aos “políticos”. Anu-
lar o convite para o ditador da Venezuela vir à cerimônia de
posse de Bolsonaro foi uma atitude “de altíssimo risco” do no-
vo governo — o Brasil, com essa decisão tresloucada, estava se
isolando do resto do mundo. Renan Calheiros seria eleito para
a presidência do Senado e, a partir dali, formaria um vigoroso
polo de “poder alternativo” ao governo; a “Resistência” encon-
traria nele seu novo comandante. Outros terremotos, além
desses? É só escolher no Google.
Fica a impressão, no meio de toda essa calamidade perma-
nente, que a vida política brasileira está tentando, em pleno
século 21, operar num sistema de moto-contínuo — os fatos, aí,
se criariam por meio da reutilização infinita da energia gerada
pelo movimento desses próprios fatos. É a fantasia da máquina
que funciona sozinha. O moto-contínuo, como se ensinava na
escola, é um fenômeno cientificamente impossível, por violar
as leis da termodinâmica. Mas isso aqui é o Brasil, e no Brasil
todo mundo sabe que há uma porção de leis que não pegam
— talvez seja o caso, justamente, da “crise política” que é apre-
sentada todos os dias ao público. Um acontecimento ganha
vida, prospera, desaparece e se reproduz num outro, o tempo
todo; o mesmo processo se repete com esse outro acontecimen-
to, e assim a coisa não para nunca. Não tem a menor importân-
cia a força real dos fatos apresentados à população nem a cons-
tatação de que nunca resultam em nada de prático; eles existem
porque são anunciados, e pronto.
A próxima catástrofe é reforma da Previdência que o gover-
no acaba de apresentar à Câmara dos Deputados. Tanto faz o
que vai realmente acontecer. Mesmo que as mudanças sejam
aprovadas, você ouvirá que o governo sofreu mais uma derro-
ta — ou porque tal ou qual item não passou, ou porque “o cus-
to foi alto demais”, ou porque o ministro Zé falou uma coisa e
o ministro Mané falou outra, e assim por diante. As verdadei-
ras questões que têm de ser resolvidas, enquanto isso, ficam
voando no espaço sideral, inalcançáveis por um debate neu-
rastênico, rasteiro e sem lógica.

Nos últimos tempos, questões de desimportância
ilimitada viraram motivo para discussões de altíssima
tensão, nas quais se debate, desesperadamente,
o destino final de tudo o que pode haver de essencial
na existência humana

Calamidade


permanente


Gustavo Bebianno com Jair Bolsonaro: quais os segredos de vida
e morte que o ex-ministro vai “contar para todo mundo”?

SERGIO LIMA/AFP
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