Público - 25.08.2019

(ff) #1

14 • Público • Domingo, 25 de Agosto de 2019


SOCIEDADE


Opinião


Falcão Reis


A divulgação de que o uso de
óculos por si só daria direito a uma
boniÆcação por deÆciência levou a
uma corrida aos consultórios de
oftalmologia. A mudança do termo
“deÆciente” para “pessoa com
deÆciência” representou um
avanço no modo como as pessoas
com deÆciência olham para elas
próprias e no modo como a
sociedade olha para as pessoas
com deÆciência. Os pais que
submetem o requerimento não
têm qualquer problema em alegar
a deÆciência dos Ælhos, mas
rejeitam em absoluto ou Æcam
visivelmente incomodados ao dizer
que o Ælho é deÆciente.
A terminologia de hoje,
entendida num sentido perverso,
juntamente com o subsídio
atribuído até aos 24 anos pode,
porventura, explicar a procura.
Os constrangimentos criados aos
oftalmologistas levaram a
Sociedade Portuguesa de
Oftalmologia (SPO) a emitir uma
recomendação de recusa do
preenchimento do requerimento
sempre que a deÆciência não se
veriÆque. O presidente do Colégio
de Oftalmologia da Ordem dos
Médicos (OM), meu colega e amigo
dr. Augusto Magalhães, num artigo
publicado no PÚBLICO, defende
que a responsabilidade da corrida
em massa aos consultórios é dos
funcionários do Ministério do
Trabalho, Solidariedade e
Segurança Social (MTSS), porque
não lêem o que está no
requerimento. Responsabiliza
também a lei, ditando que esta é
tecnicamente errada. E
responsabiliza ainda os políticos e
os princípios ideológicos
subjacentes à ação política.
Os argumentos aduzidos
levam-no a concluir que o Governo
tem de decidir se esses apoios
devem ou não existir. Conclui
também que os médicos não podem
ser responsabilizados por atestar a
deÆciência, conforme aÆrmou em
comunicado o MTSS. A posição do


presidente do Colégio de
Oftalmologia baseia-se em dois
fundamentos para isentar os
médicos de responsabilidades. O
primeiro é que o médico não pode
recusar um atestado a quem o
solicite. O segundo é que o médico
tem de reconhecer a deÆciência,
mas deve declarar se a deÆciência
afecta o desenvolvimento da
criança e se necessita de apoio
especializado. Assim, todos teriam
direito a ter o requerimento
preenchido pelo médico. Compete
depois aos serviços do MTSS avaliar
o conteúdo e decidir.
Ora a posição do presidente do
Colégio de Oftalmologia não está
cientiÆcamente documentada.
Questiona sem nenhuma razão a
letra e o espírito da lei. E interpreta
mal e de forma redutora o código
deontológico da OM. Não está
cientiÆcamente documentada,
porque o uso de óculos per se não
conÆgura uma deÆciência. É
possível dar um exemplo que todos
perceberão bem: se alguém se sente
mais confortável com +0.25 ou
-0.25 dioptrias e usa óculos deve ter
direito à boniÆcação? Todos em
uníssono dizemos “não”. Os
oftalmologistas estão neste caso
obrigados a preencher o
requerimento? Segundo o
presidente do Colégio de
Oftalmologia estão.
O presidente do Colégio de
Oftalmologia põe em causa o

fôssemos obrigados a cumprir o que
está na lei, poucas doenças Æcariam
de fora. A deÆnição de deÆciência
implica a existência cumulativa de
alterações funcionais ou estruturais
e de alterações no desempenho e na
actividade do indivíduo. Anomalias
estruturais ou funcionais isoladas
não podem ser consideradas
deÆciências, porque lhes faltam os
outros dois componentes que
participam na deÆnição de
deÆciência. O preenchimento do
requerimento pressupõe que o
médico constatou que a deÆciência
está presente. O oftalmologista só
tem de caracterizar a deÆciência se
ela existir. Da leitura da CIF, no que
concerne à acuidade visual,
retira-se que só há deÆciência
quando a visão medida com óculos
e com os dois olhos abertos for

inferior a 20/30. O presidente do
Colégio de Oftalmologia mais uma
vez não tem razão quando invoca o
código deontológico da OM para
aÆrmar que o médico tem de passar
declarações ou atestados sempre
que para isso for solicitado.
Não tem razão porque o médico
deve recusar um atestado que não
corresponda à verdade.
Na posição do presidente do
Colégio de Oftalmologia, se
solicitado, o médico tem de passar
um atestado médico por doença a
alguém que não está doente, e só
depois aÆrmar que o requerente
não está doente. O que o médico
faz, claro está, é recusar atestados
de doença, quando tal não se
veriÆca.
De igual modo, não se passa um
atestado de robustez escrevendo
que a pessoa não tem robustez.
Recusa-se o atestado quando a
robustez não se veriÆca. O
paralelismo com o assunto atinente
é total. Os médicos não devem
passar atestados só porque lhes
pedem. Devem passar atestados
que certiÆquem a verdadeira
situação em que as pessoas se
encontram. A posição do presidente
do Colégio de Oftalmologia não
contribui para o esclarecimento
público nem contribui para
estancar a procura. Ao remeter para
os funcionários do MTSS o dever de
interpretar um documento médico,
ao sugerir que uma lei da República
tem de mudar e ao colocar o apoio à
deÆciência no plano da ideologia,
atira o problema para as calendas.
Pelo contrário, a SPO defende uma
posição que não depende de
outrem. Limita-se a recomendar
que os médicos devem recusar
passar o atestado de deÆciência
quando tal não se veriÆque.
A leitura deste artigo pode levar a
pensar que existe um litígio entre a
SPO e o presidente do Colégio de
Oftalmologia, o que não é verdade.
A relação entre as duas instituições
é perfeita e converge na posição de
que é necessário acabar com as
boniÆcações indiscriminadas. Os
meios propostos para atingir esses
objectivos é que são diferentes.

BoniƊcação por deƊciência:


basta usar óculos para ter direito?


Os médicos


devem passar


atestados que


certiÄquem


a verdadeira
situação em

que as pessoas


se encontram
RUI GAUDÊNCIO

Presidente da SPO; director
do Serviço de Oftalmologia
do CHU de São João; professor
catedrático convidado da
Faculdade de Medicina do Porto

Decreto-Lei 133-B/1997, que
caracteriza a deÆciência para efeitos
de boniÆcação de subsídio familiar.
Não tem razão. porque o decreto-lei
não pode ser mais claro. Transcreve
o consenso de peritos
internacionais expresso na
ClassiÆcação Internacional de
Funcionalidades e Incapacidades
(CIF), um documento com a
chancela da Organização Mundial
de Saúde. Conforme foi explicado
no comunicado da SPO, a
veriÆcação da deÆciência é um
exercício de objectividade
consubstanciado em numerosa
codiÆcação e não deixa margem
para apreciações de carácter
subjectivo. Consultando a CIF,
veriÆca-se que a caracterização da
deÆciência faz-se em vários níveis.
A classiÆcação de primeiro nível
implica resposta aos quesitos
descritos no Decreto-Lei 133-B/
e que estão plasmados no
requerimento. A conclusão a tirar é
que o legislador obteve a
informação cientíÆca pertinente
antes de elaborar a lei.
Praticamente todas as doenças
têm na génese uma deÆciência (ou
um excesso) seja de natureza
enzimática, metabólica, genética ou
de outro tipo. A nível molecular, as
alterações da função
acompanham-se quase sempre de
alterações da estrutura. Na
interpretação do presidente do
Colégio de Oftalmologia, se
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