Público - 25.08.2019

(ff) #1
Público • Domingo, 25 de Agosto de 2019 • 3

demorar mais de uma geração para
melhorar. O Brasil ainda vai piorar
muito antes de melhorar”, diz o enge-
nheiro informático de 40 anos.
O casal esteve reticente quanto a
mudar-se para Portugal. Renato recu-
sou duas propostas para vir trabalhar
para empresas portuguesas, e só à
terceira aceitou fazer uma entrevista,
há cerca de um ano, ainda antes da
eleição de Bolsonaro. “Sentimos que
não dava mais. Eu já sentia que mui-
tas pessoas próximas de nós estavam
a ir no caminho da intolerância.” Veio
sozinho inicialmente, Elisangela resis-
tiu ao máximo até o acompanhar. No
início deste ano preparava-se para
iniciar um pós-doutoramento na Uni-
versidade Estadual do Oeste do Para-
ná e continuar a carreira académica.
Mas deparou-se com um “clima de
pessimismo assustador” entre os
colegas da academia.
As universidades federais têm sido
um dos alvos do Governo de Bolsona-
ro, que anunciou um corte de Ænan-
ciamento no início do ano, aludindo
a recursos mal gastos em “actividades
com viés ideológico”. Elisangela ouvia
relatos de bolsas congeladas, projec-
tos recusados por não respeitarem
certos critérios ideológicos e um
ambiente de perseguição. Conta a
história de uma professora que viu
uma aula interrompida pela polícia,
que lhe perguntou por que razão esta-
va a falar de Marx aos alunos.
A área de especialização de Elisan-
gela é a Literatura Africana e também
isso é problemático. “Trabalho com
questões que foram escolhidas como
foco de combate do Governo Bolso-
naro, como a questão racial ou a his-
tória e cultura afro-brasileira. É então
que decide juntar-se ao marido em
Portugal, sem saber se vai poder con-
tinuar a carreira.
Apesar de concordar com Renato
que muito diÆcilmente regressará ao
seu país, a académica manifesta algu-
ma esperança. “Gostava muito de
poder voltar a ser livre, ser uma pro-
fessora que pode falar de preconcei-
to, de feminismo, de me vestir nas
aulas como quiser”, aÆrma.

O exílio repetido de Norma
Norma Marzola e o marido viram-se
impedidos de dar aulas em universi-
dades públicas pelo Governo e, por
isso, foram obrigados a exilar-se em
Portugal. Mas isto aconteceu nos anos
1970, quando o Brasil vivia sob uma
ditadura militar que perseguia os seus

adversários políticos. Mais de três
décadas depois, Norma, hoje com 78
anos, voltou a Lisboa por razões mui-
to idênticas.
Mora em Belém (Lisboa) com a pri-
ma, Lúcia Medeiros, de 66 anos,
depois de há cerca de dois anos terem
deixado Porto Alegre. Ambas são pro-
fessoras universitárias reformadas e
militantes do PT, e assim que come-
çaram a estalar as investigações judi-
ciais do “mensalão” e da Lava-Jato ,
que tiveram o partido como alvo prin-
cipal, pensaram em abandonar o
país. Defendem que os casos de cor-
rupção que levaram o antigo presi-
dente Lula da Silva à prisão são ape-
nas pretextos para tirar o PT do
poder, a que juntam a destituição de
Dilma Rousseè. E foi nesse momento
que decidiram atravessar o Atlânti-
co.
Para Norma, foi um déjà-vu. Entre
1974 e 1980 viveu em Lisboa, numa
época em que centenas de exilados
brasileiros convergiram para Portu-
gal, que recentemente saíra da dita-
dura. Norma era militante do Partido
Comunista Brasileiro, mas em Lisboa
conheceu Leonel Brizola, um desta-
cado líder da oposição à ditadura, e
foi uma das subscritoras da Carta de
Lisboa, o documento fundador do
Partido Democrático Trabalhista
(PDT), de cariz social-democrata, e
apoiado por Mário Soares. Em 1980,
Norma regressa ao Brasil e assiste à
redemocratização, Ælia-se no PT e vê
a esquerda no poder durante mais de
uma década.
Desta vez, Norma e Lúcia não acre-
ditam que venham a regressar. “O
jeito de Bolsonaro deu aval para que
as pessoas começassem a dizer o que
antes não se permitiam dizer e voltar
a pôr isso na caixa preta é muito difí-
cil”, diz Lúcia. Deixaram de conseguir
debater política, até com a família.
Norma diz ter uma prima, uma irmã
e um sobrinho com quem quase não
consegue falar. “São absolutamente
intoleráveis, só me falam para dizer
desaforos.”
As duas mantêm uma militância
activa em Portugal. Participam nas
acções do Coletivo Andorinha e do
Núcleo do PT em Lisboa — depois de
falarem com o PÚBLICO seguiram
para uma manifestação na Praça Luís
de Camões contra os cortes na Edu-
cação no Brasil. Um dos objectivos é
mostrar aos que estão a milhares de
quilómetros “que não estão sozi-
nhos”, diz Lúcia. “Queremos

ANDREIA GOMES CARVALHO


A


emigração brasileira vem
aumentando desde 2014
e nos primeiros seis
meses deste ano a
Receita Federal do Brasil
recebeu 21.873 declarações de
saída definitiva de cidadãos do
país, quase tanto (23.149)
como os que deixaram o Brasil
em todo o ano de 2018. Estes
12 meses podem terminar com
uma duplicação de saídas em
relação ao ano passado.
Segundo os dados do jornal
Estado de Minas , desde 2014,
em que houve 12.520 entregas
destas declaração, que os
números da emigração estão
em crescendo: 14.920 em
2015, 21.040 em 2016, 22.
em 2017 e 23.149 em 2018.
Crise no mercado de trabalho
(12% de desemprego no
segundo trimestre) e letargia
da actividade económica são
as razões para que tanta gente
desista do país e entregue a
declaração de saída definitiva.
As estatísticas do segundo
trimestre do Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística,
divulgadas recentemente,
mostram que o desemprego e
o subemprego estão a
transformar-se em condição
permanente para uma parte da
população brasileira: 3,
milhões de pessoas, ou 26,2%
dos desempregados, estão à
procura de emprego há pelo
menos dois anos.
Ao contrário de outros
períodos de grande emigração
no Brasil, agora não são os
mais pobres a engrossar a leva
dos que partem. Estudos
mostram que desta vez o
grosso tem maior escolaridade
e melhor nível
socioeconómico. Há quem fale
em “fuga de cérebros”,
pessoas especializadas,
formadas em universidades
brasileiras que vão para
estrangeiro em busca de
melhores e mais bem
remuneradas oportunidades.
António Rodrigues

Valor recorde


na emigração


Nestas páginas, Elisangela
Rocha e o marido, Renato. Em
baixo, Tales Duarte. Na página
seguinte Samara Azevedo.
Todos eles acusam
o presidente Jair Bolsonaro
de ter adensado o clima tóxico
da política brasileira

NUNO FERREIRA SANTOS

c
Free download pdf