Público - 25.08.2019

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4 • Público • Domingo, 25 de Agosto de 2019


joã[email protected]

DESTAQUE


CRISE NO BRASIL


chegar aos brasileiros no Brasil e tam-
bém aumentar o eco da ajuda inter-
nacional nesse momento de crise
civilizacional”, explica.
Contam que já foram alvo de reac-
ções adversas da parte de outros bra-
sileiros em Lisboa e que um homem
atirou cerveja sobre a bandeira que
levavam consigo para uma manifes-
tação. “É incrível o ódio e o fanatis-
mo”, desabafa Norma.
Ambas dizem que o Brasil vive uma
nova ditadura e não consideram abu-
sivo comparar as duas épocas, embo-
ra notem “subtilezas”. “O dispositivo
de repressão é fragmentado: os indí-
genas são destruídos como indígenas,
os sem-terra são destruídos como
sem-terra. O Estado já não é aquela
coisa monolítica que atravessa tudo”,
aÆrma Lúcia.
Apesar da falta de esperança,
garantem que nunca vão baixar os
braços, mesmo longe. “Não cansa,
mas Æca-se triste, tu choras, depri-
mes”, diz Lúcia, sem esconder a emo-
ção. “Há gente a morrer de fome, sem
a menor necessidade, num país
riquíssimo. Não dá para ter consciên-
cia disso e Æcar a vaguear.”


Tales, o encrenqueiro


Para Tales Duarte, morar fora do Bra-
sil não é novidade. Já passou tempo-
radas no México, de onde a mulher é
natural, e em Itália. Mas nunca saiu
do país com intenção de Æcar tanto
tempo como quando deixou Belo
Horizonte em Setembro do ano pas-
sado. “O gatilho para sair foi a questão
política”, diz o engenheiro informáti-
co, por telefone.
Saiu do Brasil um pouco antes das
eleições, no Ænal de 2018, quando já
se desenhava a vantagem de Bolsona-
ro, mas disse a si próprio que se o
candidato do PT, Fernando Haddad,
vencesse, regressava. Perdeu, e desde
então Tales vive em Lisboa, onde a
mulher e o Ælho de quatro anos che-
garam quatro meses depois. Tales
também previu que o ambiente social
se iria tornar ainda mais tóxico após
as eleições.
O seu principal receio era vir a
“sofrer alguma retaliação” por causa
da sua actividade política nas redes
sociais, onde partilha frequentemen-
te publicações de esquerda e contra
Bolsonaro.
Na sua nova vida, Tales está a come-
çar a envolver-se com organizações
com a Mídia Ninja e nota que Lisboa
se está a tornar “um núcleo de resis-


todos são apoiantes de Bolsonaro.
Acabou excluído do grupo de
Whatsapp que os reunia. O brasileiro
admite que existe algum conÇito
entre os colegas de trabalho, mostran-
do que as ondas de choque da polari-
zação no Brasil se fazem sentir bem
longe. “Se eu sei que ele apoia o Bol-
sonaro, não vou marcar uma cerveja
à noite. Eu deixo bem claro para evi-
tar que eles se confundam.”

A angústia de Samara
Muitas vezes, os encontros entre bra-
sileiros que partilham a mesma visão
política são encarados como uma
espécie de terapia. Ao stress do eterno
confronto, por vezes violento, em que
a política brasileira se transformou
junta-se a angústia de estar num país
diferente, muitas vezes sem conhecer
mais ninguém. Foi o que aconteceu a
Samara Azevedo, de 32 anos, que há
dois anos ajudou a fundar o Coletivo
Andorinha, que tem organizado ini-
ciativas de rua para marcar aconteci-
mentos relevantes no Brasil.
Os primeiros actos serviram para
defender o Governo de Dilma Rous-
seè, numa altura em que as movimen-
tações para a sua destituição já esta-
vam a todo o vapor. Samara não gos-
tava da ideia generalizada de que
Rousseè estava sem apoio popular e
quis apresentar uma “contranarrati-

va”. “Houve a necessidade de dizer
aos portugueses que os media [brasi-
leiros] não eram um desses apoios e,
por isso, não contavam essa parte da
história.”
A natureza do grupo foi evoluindo
conforme os desenvolvimentos polí-
ticos no Brasil. E se inicialmente era
composto quase apenas por estudan-
tes, hoje já tem um segmento impor-
tante de trabalhadores. Para além de
marcar a agenda contestatária brasi-
leira, como as grandes manifestações
do Ele Não durante a campanha pre-
sidencial brasileira, o Coletivo Ando-
rinha também começou a servir para
que se discutam temas como as con-
dições da imigração brasileira em
Portugal e o discurso colonialista por-
tuguês, “que ainda é muito antiqua-
do”, observa Samara, que está a tirar
um doutoramento na Faculdade de
Belas-Artes de Lisboa.
Angústia é a palavra que escolhe
para deÆnir o sentimento que domi-
nava os primeiros tempos do Coletivo
Andorinha. “Depois de algum tempo,
conseguimos trabalhar essa angústia
e transformá-la em acção efectiva.”
Uma forma mais tradicional de
militância é feita pelo Núcleo do PT
em Lisboa — a única representação de
um partido brasileiro em Portugal —
fundado em 1993. Actualmente tem
70 militantes inscritos, embora ape-

nas entre 15 a 20 sejam activos, diz
Evonês Santos.
A coordenadora admite conhecer
vários casos de “petistas” que chegam
a Portugal por serem perseguidos no
Brasil, mas acabam por não integrar
de imediato o núcleo. “Penso que já
vêm com um cansaço tão grande da
perseguição, de não ter liberdade,
que preferem ter um tempo de férias
de militância”, observa.

Gabriela faz as malas
Gabriela Moreno, de 36 anos, está
prestes a engrossar as Æleiras destes
auto-exilados do Brasil contemporâ-
neo. Deve aterrar em Portugal em
Setembro para frequentar o doutora-
mento em Políticas Públicas na Uni-
versidade de Aveiro. Foi a forma que
encontrou para se manter próxima
da sua área proÆssional, depois de ter
trabalhado vários anos para a autar-
quia do Rio de Janeiro.
Recentemente viu as portas da sua
área serem fechadas. Diz ter algumas
“suspeitas” em relação ao processo
do seu afastamento da Câmara Muni-
cipal do Rio, uma vez que nunca lhe
deram explicações. Diz que até este
ano continuou a receber propostas
de trabalho para órgãos públicos,
incluindo em Brasília, num dos minis-
térios do Governo do anterior presi-
dente Michel Temer. Este ano Æcou a
saber de outro lugar num ministério
para o qual o seu perÆl era adequado,
mas disseram-lhe que não valia a
pena candidatar-se, já que “não pas-
saria na peneira ideológica”, conta.
Com o pretexto de acabar com o
“aparelhamento” do Estado feito pelo
PT, o Governo Bolsonaro tem afasta-
do quadros técnicos em vários orga-
nismos e ministérios. A militância no
movimento negro e feminista pode
ter prejudicado a continuação da car-
reira de Gabriela.
A consultora também refere a
intensiÆcação do clima de inseguran-
ça no Rio, que atribui à onda conser-
vadora que pôs Bolsonaro em Brasília
e Wilson Witzel, um juiz que defende
execuções extrajudiciais para comba-
ter o crime, como governador do
estado. “Existe hoje um discurso de
exaltação à violência e, principalmen-
te, do uso de armas no Brasil. Qual-
quer briga de trânsito hoje vem acom-
panhada da ameaça de que um dos
envolvidos poderá estar armado”,
explica Gabriela.

O jeito de Bolsonaro


deu aval para as


pessoas começarem


a dizer o que antes


não se permitiam


Lúcia Medeiros

tência”. “Se as pessoas no Brasil virem
que há um grupo questionando com
uma visão mais limpa, tendo outras
experiências, conhecendo outro país,
e mostrando que o Brasil está a passar
por um regime ditatorial, isso irá ins-
pirar muita gente a tomar atitudes lá”,
espera o informático de 42 anos.
Diz que é conhecido por “criar pro-
blemas” nos grupos de Whatsapp
onde está inserido. O meio empresa-
rial onde se move é composto maio-
ritariamente por “coxinhas”, a classe
alta e conservadora que sempre olhou
com desconÆança para o PT. Na
empresa onde trabalha, Tales diz que
existem mais 15 brasileiros e quase

NUNO FERREIRA SANTOS

3,
milhões de brasileiros estão
à procura de emprego há
pelo menos dois anos. A taxa
de desemprego é de 12%
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