Público - 25.08.2019

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8 • Público • Domingo, 25 de Agosto de 2019


em fazenda a tentar convencer os proprietários
a cederem as suas terras. E teve sucesso.
Armado com as promessas de dezenas de
fazendeiros, voou para Washington e conven-
ceu a WWF a Ænanciar uma vaga para um es-
tudante de mestrado que o ajudasse a desen-
volver o projecto. Conseguiu apenas 500 dó-
lares por mês, uma verba tão pequena que
acabou por alojar gratuitamente o estudante
na sua cave. Este pesquisava terras adequadas,
preparava mapas, procurava negócios locais e
cientistas que pudessem ajudar. Enquanto isso,
Lovejoy andava à caça de Ænanciamento. Atra-
vés do WWF, entrou em contacto com outras
instituições às quais apresentou a sua ideia. O
Smithsonian e a National Geographic Society
comprometeram-se a ajudar durante alguns
anos, tal como o Banco Mundial e, mais recen-
temente, o Banco Nacional de Desenvolvimen-
to Económico e Social (BNDES).


Entre Washington


e a floresta tropical


O trabalho na Çoresta tropical começou em



  1. Parcelas de Çoresta tropical virgem – um
    hectare, dez hectares, cem hectares, mil hec-
    tares — dispostas em quadrados perfeitos e
    rodeadas por pastagens naturais, como se fos-
    sem ilhas. Algumas equipas Æcavam na Çores-
    ta durante todo o ano. Lovejoy dividia-se entre
    a Çoresta tropical e Washington, onde conti-
    nuava o seu trabalho no mundo dos ricos e
    poderosos. Foi vice-secretário do Instituto
    Smithsonian e conselheiro principal para a bio-
    diversidade do Banco Mundial. Foi também
    conselheiro de Æguras políticas, entre as quais
    quatro presidentes dos EUA, e de empresas,
    como a Mars. Era convidado para churrascos
    organizados por senadores e para recepções
    na Casa Branca. As fotograÆas mostram-no de
    fato, laço ao pescoço e um grande sorriso, ao
    lado dos homens mais poderosos do mundo.
    Mas fugia regularmente, desaparecendo du-
    rante meses para viver na Çoresta tropical.
    Morava no acampamento, dormia numa rede
    e usava as mesmas roupas semanas a Æo. Sob
    um calor sufocante, caminhava pelas ilhas de
    Çoresta tropical, numerando árvores e colo-
    cando redes nas copas das árvores para captu-
    rar morcegos e pássaros, que depois apanhava
    com cabos telescópicos. De seguida, numa es-
    tação móvel de identiÆcação, colocava anilhas
    e atribuía códigos aos pássaros antes de os sol-
    tar. Contava espécies de samambaias, musgos,
    arbustos, tudo o que tinha vida. A sua base de
    dados era a mais detalhada dos trópicos, quiçá
    a mais detalhada do mundo. Durante anos, os
    quadrados de Lovejoy foram os locais mais bem
    estudados da Çoresta brasileira.
    Lovejoy estava a pôr a paciência dos seus
    patrocinadores à prova. Passaram-se anos sem
    que publicasse quaisquer resultados, nem se-
    quer preliminares. Dez anos, 15 anos, ainda
    nada. “As pessoas começaram a Æcar aborre-
    cidas”, admite. Sempre que ia a Washington,
    encontrava-se com os seus Ænanciadores. De
    todas as vezes estes pediam-lhe resultados, algo
    que dissesse: “Vejam, é por isto que estamos
    aqui.” O WWF deixou de contribuir, assim
    como outros patrocinadores. Até que, ao vigé-
    simo quarto ano do projecto, Lovejoy publicou
    o primeiro grande artigo cientíÆco sobre a ex-
    periência. Hoje, é considerado um dos mais
    importantes da ecologia moderna.
    Horas depois de a caravana ter virado para
    o caminho lamacento, o grupo pára à frente
    de uma placa com a inscrição “BDFFP” — Bio-
    logical Dynamics of Forest Fragments Project
    [Projecto Dinâmica Biológica de Fragmentos
    Florestais]. Lovejoy sai da carrinha, para a ber-


ma da estrada, afastando uns pequenos galhos.
À sua frente, uma Çoresta interminável. Um
mundo verde e castanho, samambaias e mus-
gos, troncos grossos e Ænos, folhagem densa e
lianas. Muitas lianas. “Demasiadas lianas”, diz
Lovejoy. Este é um dos seus fragmentos, um
quadrado perfeito, delimitado por todos os
lados. As lianas crescem particularmente bem
aqui. Desde 1979, quase metade das aves que
aqui viviam ou migaram ou morreram. “A di-
ferença para a Çoresta intacta é quase invisí-
vel”, diz Lovejoy, “mas conseguimos ouvi-la.
E senti-la.” É desconfortável estar naquele frag-
mento; um sentimento de alienação. De certa
forma, parece morto. Mexe-se e zumbe — há
mosquitos, moscas e borboletas por todo o
lado —, mas não se ouvem os característicos
chamamentos estridentes. Nada de “zuiii-ups”.
Nem grunhidos ou coaxos. Nas margens do
fragmento sente-se o vento, leve mas constan-
te. Na Çoresta tropical, protegida por todos os
lados, é impossível sentir uma brisa. Mas ao
longo do perímetro desimpedido o vento sopra
e as árvores, que não estão habituadas, cres-
cem como se lhe virassem as costas. O frag-
mento tenta isolar-se, conter-se em si próprio.
E torna-se assim uma ilha ecológica.

O ponto crítico


No artigo Rates of Species Loss from Amazonian
Forest Fragments [“Taxas de Perda de Espécies
em Fragmentos da Floresta Amazónica”], pu-
blicado pela Academia Nacional de Ciências
dos Estados Unidos em 2003, é feita uma com-

paração entre os fragmentos de Çoresta e áreas
de controlo localizadas em Çoresta intacta.
Neste fragmento especíÆco, por exemplo, a
biodiversidade decresceu até 50%. Cadeias ali-
mentares inteiras extinguiram-se. Quanto mais
pequeno o fragmento, maior é a perda de ani-
mais de grande porte — quanto maior for a am-
plitude de movimento da espécie e a comple-
xidade da cadeia alimentar, mais provável é
que desapareça. Até árvores enormes e mile-
nares se tornam mais susceptíveis. “O isola-
mento de um ecossistema é equivalente à ra-
dioactividade”, aÆrma Lovejoy: decompõe-se,
simpliÆca-se. “E isso aplica-se à Çoresta tropical
e a todos os biótopos.”
Este trabalho veio provar que a floresta tro-
pical amazónica morre mais um pouco a cada
estrada, a cada fazenda. E que isso acontece
exponencialmente. Há um momento a partir
do qual a taxa de extinção atinge um ponto
decisivo e os danos se tornam irreparáveis. “No
fragmento podemos descobrir esse ponto de-
cisivo, aumentando gradualmente a exposi-
ção”, diz Lovejoy, e esse conhecimento pode
depois ser transposto para a Çoresta tropical
como um todo. No início, Lovejoy acreditava
que esse ponto decisivo, o ponto de não-retor-
no, estaria à volta dos 40%. Hoje os ecologistas
tropicais estimam que seja entre 20% e 25%.
“A taxa actual de desÇorestação”, alerta Love-
joy, “é de 18%.”
Quando Lovejoy publicou as suas descober-
tas, em 2003, sabia o que se iria seguir. O pro-
jecto consumia 600 mil dólares por ano. Que
sentido tinha agora, depois de ter respondido
à grande pergunta que tinha orientado a pes-
quisa? Não obstante, queria prolongar indeÆ#
nidamente o estudo — perceber a evolução da
Çoresta tropical. Mas temia que isso não fosse
argumento suÆciente. Os novos projectos são
mais estimulantes para os doadores do que a
manutenção dos antigos. Mas Lovejoy sabia o
que tornava especial o seu projecto: o calor, a
humidade, o verde, os sons — a Çoresta publi-
citava-se a si própria. Ele só tinha de fazer com
que as pessoas certas a visitassem.
A caravana continua a chocalhar pela estra-
da de terra batida em direcção ao Acampamen-
to 41. Começa a chover e os pneus deslizam na
lama. O condutor tira o cinto para compensar
os solavancos. As carrinhas continuam a ace-
lerar e a Æcarem presas, aos saltos e às sacudi-
delas, às vezes andando para os lados tanto
quanto andam para a frente. É então que, che-
gados a uma zona plana de terra, os motores
são desligados. “Bem-vindos”, diz Lovejoy. Os
motoristas retiram caixas de madeira das car-
rinhas e arrastam-nas para dentro da Çoresta.
Após dez minutos de caminhada sobre raízes,
samambaias e trilhos de formigas, aparece uma
clareira. No meio ergue-se um modesto barra-
cão, equipado com um grelhador, alguns ban-
cos, uma pequena torre de água e um punhado
de estruturas feitas de madeira e chapa ondu-
lada, com redes para dormir no interior.
Numa das extremidades do barracão dois
estudantes trabalham com microscópios, ro-
deados por computadores portáteis e lupas.
Alguns biólogos brasileiros estão sentados num
círculo de cadeiras. Uma equipa de ornitólogos
americanos delibera sobre a sua própria expe-
dição. Os motoristas e os cozinheiros do acam-
pamento estão de t-shirt e calções; por outro
lado, os visitantes vestem o que presumivel-
mente pensam ser “roupa para a selva”: calças
cargo com dezenas de bolsos e fechos, chapéus
panamá, garrafas de água à cintura. O calor é
insuportável, as roupas colam-se aos corpos
transpirados. Não corre uma brisa. Lovejoy
aguenta estoicamente o calor. Estremece um
pouco ao deixar a mochila escorregar dos om-

De biólogo a networker
Lovejoy confessa-se hoje mais networker
do que biólogo. Na floresta amazónica dá
pequenas palestras sobre trivialidades
interessantes a grupos de pessoas com
interesses distintos, mas com uma causa
comum: a protecção desta floresta
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