Público - 25.08.2019

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Público • Domingo, 25 de Agosto de 2019 • 11

comboios, gastar em produtos de luxo na Tmall
[empresa público-privada de venda online ],
Æcar em hotéis de luxo”, prossegue.
É com base nesta lista que estão feitos os
relatos nos media sobre pessoas que, por te-
rem feito algo de errado, não podem viajar
em primeira classe, mas o que está por trás
da ideia é que, faz notar Creemers, “se não se
tem dinheiro para pagar a multa, não se pode
gastar em produtos de luxo”.
Recentemente, tem havido um trabalho
para melhorar a partilha de informação entre
autoridades que usem essas listas, diz a revis-
ta Wired — num artigo em que também abor-
dam as ideias erradas em torno do sistema de
crédito social chinês. “De alguma forma, isso
foi interpretado como se tudo aquilo que fazes
fosse vigiado constantemente por um panóp-
tico, e não foi isso que veriÆquei”, disse à re-
vista Jeremy Daum, investigador do Centro
Paul Tsai da Faculdade de Direito da Univer-
sidade de Yale, com sede em Pequim. “Para
já, [estas listas] estão em papel e não são co-
municantes”, acrescenta ainda Creemers.
O investigador explica como tudo começou:
foi já no Ænal dos anos 1990/2000, quando a
China passa da economia planeada para a
economia de mercado. “Porque inevitavel-
mente há coisas que vão correr mal — porque
as pessoas fazem batota”, diz, lembrando es-
cândalos desde o leite com melamina até ca-
sos de poluição ou contrafacção.
Para o Governo central, a prioridade para
superar as diÆculdades da transição para a
economia de mercado passou a ser medir a
conÆança. Esta passou de uma conÆança es-
tritamente no mercado para uma ideia mais
lata de maior honestidade, e os planos sobre
sistemas de crédito social passaram a incluir
não só o Ministério da Economia, mas tam-
bém outros.

Um país, vários sistemas


Outra concepção errada sobre a China é que
tudo funciona a partir do Governo central.
Ora, o país é enorme. “Para dar uma perspec-
tiva: a cidade chinesa de Kashar é mais perto
de Berlim do que de Pequim”, exempliÆca o
investigador.
O velho ditado chinês, lembra Creemers,
“As montanhas são altas e o imperador está
longe” é ainda verdade sob o regime comu-
nista: províncias, distritos, cidades, aldeias e
“todas estas unidades administrativas têm um
funcionário do partido a mandar”. Estes fun-
cionários sabem que, “na maior parte dos
casos, podem melhorar a sua carreira não
sendo totalmente honestos na informação que
enviam”, diz Creemers. “O próprio primeiro-
ministro, Li Keqiang, disse um dia que nunca
olhou para as estatísticas do PIB de cada re-
gião porque sabia que são duvidosas.”
O sistema de crédito social está ligado a es-
tas diferenças regionais de duas maneiras.
Por um lado, seria um modo de conseguir
controlar pessoas que hoje podem cometer
ofensas numa província e depois seguir para
outra e não ser apanhadas (porque não há
partilha de informação): “O sistema de crédi-
to social quer ter mecanismos que permitam
que a lei seja aplicada a um nível nacional.”
É algo que não acontece hoje.
Por outro lado, há projectos-piloto a nível
local. Uma das melhores maneiras de “ganhar
pontos sendo um líder local” na hierarquia
do Partido Comunista Chinês “é pegando em
ideias centrais e concretizando-as muito
bem”, diz Creemers.
Entre as várias experiências locais, há cida-

O


Governo chinês começou
um programa em que os
1,4 mil milhões de cida-
dãos vão ter uma pontua-
ção com três dígitos. Essa
será baseada em tudo o
que fazem: o carro que
usam, os produtos que
compram, se atravessam a rua quando o se-
máforo está vermelho, etc. Toda a sua vida
será decidida com base nesse número: que
emprego podem ter, que universidades podem
frequentar, para que escolas podem mandar
os Ælhos, se podem ter empréstimo para casa.
Chama-se “sistema de crédito social”.
Esta é a realidade que nos últimos dois anos
foi descrita em meios de comunicação um
pouco por todo o mundo, muitas vezes clas-
siÆcada como “orwelliana” ou “distópica”.
Quando Rogier Creemers, professor na Uni-
versidade de Leiden (Holanda), repete estas
ideias numa conferência em Weimar (Alema-
nha), a audiência reconhece-as de imediato e
soa-lhes bem — já quase todos terão lido algo
muito semelhante. O problema? “É que qua-
se nada disto está correcto.”
Creemers, que é especialista em Direito chi-
nês, sente-se responsável de algum modo por
ter sido “a primeira pessoa a escrever” sobre
um sistema de crédito social. E agora dá pa-
lestra após palestra (o P2 ouviu-o no Kul-
tursymposium em Weimar, onde esteve a
convite do Goethe-Institut) para clariÆcar a
ideia feita de que há um sistema envolvendo
reconhecimento facial, inteligência artiÆcial,
análise de dados, um algoritmo que prevê
comportamentos com base nisto — e que isso
dita a vida de um cidadão. Mas isto não existe,
porque não há escala nem capacidade técni-
ca. “Há muitos erros nas notícias sobre o sis-
tema de crédito social”, desabafa.
Na verdade, diz Creemers, nem sequer há
“um” sistema de crédito social — uma concep-
ção errada que pode ter sido criada por uma
ambiguidade na língua, em que singular e
plural não são claros, e ainda pela palavra
“crédito”, que pode referir-se ao crédito Æ#
nanceiro, no sentido de cartão de crédito, mas
também a “Æabilidade”, “sinceridade” e “ho-
nestidade”.
Ou seja: o termo “sistema de crédito social”
é usado para descrever “um sistema seme-
lhante de mecanismos, a maioria empregados
pelo Governo, alguns por privados, e estes
têm algumas características comuns, mas di-
vergem no essencial do que fazem”.

Lista negra


Uma grande parte do que é entendido pelo
“sistema de crédito social” é baseado na exis-
tência de listas negras, de pessoas que desres-
peitaram regras. A primeira coisa a perceber,
diz Creemers, é que não há uma lista negra.
Há várias, por sector, e binárias — ou se está na
lista ou fora. “Há listas para pessoas que pro-
vocaram desacatos em aviões, por exemplo, e
as que estão nesta lista não poderão viajar de
avião. Há listas de empresas que não cumprem
as regulações de segurança, etc., etc.”
A lista “mais irritante para quem está nela”,
conta Creemers, é a lista do Supremo Tribunal.
Esta junta “pessoas não Æáveis sujeitas a puni-
ção”: são pessoas que não respeitaram uma lei
ou um regulamento (estão especiÆcadas num
“longo documento”), foram condenadas e não
pagaram a multa. “E aí fecham-se portas”, re-
lata Creemers. “Já não se pode ser director de
uma empresa, concorrer a programas de go-
verno, viajar de avião, ir de primeira classe em

des com câmaras de reconhecimento facial e
identiÆcação de matrículas. “Isto explica-se
porque as autoridades municipais tendem a
focar-se em questões sobre as quais têm ju-
risdição, como o trânsito”, explica o investi-
gador. Desta experiência local virá a parte dos
artigos nos media internacionais que mencio-
navam câmaras com reconhecimento facial.
A chegar ao Æm da apresentação, Creemers
observa que ainda não disse a palavra “pon-
tuação”. Vai dizê-la agora, ao explicar que há
cidades a “fazer experiências com algumas
formas de pontuação, em que com muitos
pontos negativos deixa de se poder ser fun-
cionário público ou receber subsídios, por
exemplo”. Mas ainda não é uma ideia que es-
teja pensada a nível nacional.
Creemers deixa a ressalva de que “isto é hoje
— no futuro pode mudar”. Mas a tecnologia
envolvida nos programas ainda é muito básica,
e desenvolvê-la será um enorme desaÆo.

Paternalismo e tecnologia


O investigador tem ainda na manga algo para
“quem se foca no lado do sistema comunista”:
“A primeira parte do documento de 2014 de
planeamento do sistema de crédito social [o

plano mais importante] é sobre supervisão
de responsáveis do governo. E outra sobre
supervisão dos tribunais.”
Outra parte do mal-entendido deverá vir
da experiência de uma empresa privada: o
site Alibaba, uma espécie de eBay, precisava
não só de um sistema de pagamentos como
de um sistema de ranking de vendedores e
compradores. Encontrou um, designado Se-
same Credit, que “é uma mistura de crédito
com incentivos do tipo programa de milhas”.
Um responsável disse que quem comprava
fraldas ganhava mais pontos de conÆança do
que quem comprava videojogos. “Não foi uma
boa táctica de relações públicas”, diz Cree-
mers a rir-se, “e a empresa veio dizer que não
fazia a avaliação assim.”
Também se criou a ideia de que os amigos
que se têm nas redes sociais poderiam inÇuen-
ciar os pontos e que quem tivesse amigos dis-
sidentes poderia ser afectado. “Se alguém
tiver um amigo dissidente, o menor problema
será o ser pouco conÆável num site de com-
pras”, sentencia Creemers. (Muitos dissiden-
tes têm sido presos, outros exilaram-se; al-
guns, como o Nobel da Paz Liu Xiaobo, mor-
reram, enquanto cumpriam pena, outros
foram perseguidos no estrangeiro. Advogados
que defendam dissidentes são cada vez mais,
eles próprios, acusados.)
“O mais assustador na China ainda não é o
sistema de crédito social”, diz Creemers, dan-
do o exemplo de Xinjiang, região autónoma
no extremo ocidental do país, onde o regime
aprimorou as práticas de repressão contra a
comunidade muçulmana uigur, recorrendo a
câmaras de vigilância e a tecnologia de reco-
lha de dados — tácticas especiÆcamente direc-
cionadas para controlar os uigures.
No simpósio de Weimar, Creemers foi ques-
tionado sobre o que pensam os chineses sobre
o sistema de crédito social: a maior parte não
ouviu falar sobre o programa, diz o investiga-
dor. Os que ouviram terão, no entanto, uma
impressão positiva: “O cidadão chinês comum
gosta da ideia, porque a vê como uma solução
contra a corrupção, [que é] um dos maiores
problemas que as pessoas enfrentam no seu
dia-a-dia.” Esta noção é consistente com uma
das prioridades de Xi Jinping desde que chegou
ao poder, em 2012, quando lançou uma ampla
campanha para “purgar” o Partido Comunista
Chinês de elementos suspeitos de corrupção.
“Na China, a moralidade e a governação es-
tiveram sempre intimamente ligadas. O sistema
de crédito social apenas adapta este paterna-
lismo à economia de mercado do século XXI”,
observa Creemers, desta vez numa entrevista
ao site Asia Society. “Para além disso, há a no-
ção de que existe hoje na China uma crise mo-
ral que necessita de ser urgentemente resolvi-
da.” Na conferência, o investigador terminou
com a ideia de que mais interessante do que
o sistema é a razão pela qual este ganhou tan-
ta relevância nos media ocidentais.
“O que achamos do sistema de crédito social
diz muito sobre nós”, diz. “Hoje, as pessoas
estão assustadas”: a democracia liberal era o
Æm da história, e a tecnologia era o símbolo
do progresso. “Mas aÆnal a tecnologia é par-
te da ameaça, com o uso de dados, o hacking
das eleições americanas, a NSA... E a China,
um país que nem devia existir, com uma po-
lítica fechada e economia liberal, tornou-se
tão poderoso...” “O modo como falamos dis-
to diz imenso sobre nós, as nossas esperanças
e os nossos medos”, conclui Creemers. com
João Ruela Ribeiro

[email protected]

O que achamos do


sistema de crédito


social diz muito


sobre nós. Hoje,


as pessoas estão


assustadas


Rogier Creemers

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