Público - 25.08.2019

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Público • Domingo, 25 de Agosto de 2019 • 15

manifestações são ínÆmos, a expressão estam-
pada nos rostos das 120 pessoas escolhidas para
o mosaico do CCB é explícita e generalizada.
E vai para além da tristeza magoada ou da có-
lera momentânea. “Mais do que a tristeza, quis
transmitir principalmente o desalento, que é
um misto de desânimo e de falta de perspec-
tiva. É o sentimento de alguém que está num
beco sem saída, desamparado. Nesta altura,
as pessoas tinham a sensação que não conta-
vam para quem estava a tomar conta do país.
O poder político só se preocupava com núme-
ros, com o déÆce, com a troika. ” Com esta ex-
posição, Luís Ramos quer alertar também para
a tendência recorrente de “considerar as pes-
soas apenas como números”. “Os números têm
rostos. A macroeconomia esquece as pessoas,
mas elas estão cá — são estas, somos nós.”
Para além de nos querer concentrados nes-
tas expressões, e no que está para além destas
faces visíveis, Luís Ramos “fechou” o plano
apenas nos rostos para tentar fugir a estereó-
tipos, categorias ou classes sociais de quem
participou nos protestos de 2013. “Nestas ma-
nifestações notei que havia muitas pessoas de
classe média. Não eram ‘os pobres’ ou os ma-

O


s sinais são muito ténues. E
poucos também. Só quando
nos aproximamos do imen-
so mural de mais de uma
centena de retratos que se
ergueu na Praça CCB, em
Lisboa, é que nos aperce-
bemos de um homem que
cobre a cabeça com o jornal O Estivador , uma
mulher que segura um apito nos lábios, um
homem com uma bóina à Che Guevara, dois
outros que parecem gritar (palavras de ordem?).
Estas pessoas, e todas as outras ao seu lado,
estiveram em manifestações em 2013 contra
as medidas de austeridade impostas pela troika
em Portugal. O fotógrafo Luís Ramos, ex-re-
pórter do PÚBLICO, quis descontextualizá-las
do ambiente geral destas acções de protesto e
concentrar-se apenas no rosto de cada um, na
tentativa de encontrar uma representação mais
profunda do “desalento”, o sentimento que,
na sua opinião, mais marcou o país nos anos
em que Portugal se viu na inevitabilidade de
pedir ajuda Ænanceira externa.
Se os pormenores que nos ajudam a inter-
pretar estas imagens como tendo origem em

nifestantes do costume — havia pessoas que se
tornaram mais pobres neste contexto, que en-
traram numa situação de carência, provavel-
mente numa altura da vida em que não imagi-
navam chegar a essa situação. E por isso foram
para a rua”, diz o fotógrafo em conversa com
o P2, em frente ao mural a que chamou Remem-
ber e que pode ser visto até 29 de Setembro.
Essa “altura da vida” diz respeito a pessoas
com um percurso proÆssional longo. A escolha
de retratos de uma faixa etária alta é o reÇexo
mais imediato dessas situações de alguma sur-
presa pelo empobrecimento que lhes bateu à
porta. Não que entre as multidões por onde
andou não houvesse pessoas mais novas. Cer-
to é que Luís Ramos não sentiu nelas a mesma
predisposição para serem fotografadas. “Fiquei
com a ideia de que as pessoas mais velhas vi-
nham com a convicção de que já não tinham
nada a perder e não se importavam de mostrar
essa situação aos outros.”
E porquê revelar agora estes rostos de pro-
testo dos tempos da troika? “Porque não en-
contrei antes outro lugar que os quisesse mos-
trar.” O ideal para Luís Ramos era ter feito esta
exposição pouco depois dos protestos. Mas não

queria ligar este trabalho a uma mudança de
ciclo político, que aconteceria no Ænal de 2015.
“O que se passou está acima da política nacio-
nal. Fosse qual fosse o partido a governar, ha-
via uma ordem acima dele — a ordem dos dé-
Æces, dos números, das instituições suprana-
cionais, o BCE, o FMI, a UE. Estas pessoas não
foram vítimas do PSD, do PS...”
No decorrer deste trabalho, Ramos preferiu
não interpelar as pessoas com pedidos de au-
torização para as fotografar ou manter com
elas qualquer outro tipo de conversas. A inten-
ção era captar o máximo de espontaneidade,
apesar de cada retratado ter a noção de que
estava a ser fotografado, dada a proximidade
do autor das imagens. Se falasse com elas antes,
Ramos acredita que, provavelmente, as pessoas
iam dar-lhe “a imagem que elas queriam delas”
e não a imagem que ele queria delas.
Apesar de o retrato ter andado longe do seu
trabalho como repórter, o fotógrafo sente-se
hoje mais próximo deste registo, consideran-
do-o “cada vez mais importante”. Talvez por-
que “na cara das pessoas está tudo.”

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