Público - 25.08.2019

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Público • Domingo, 25 de Agosto de 2019 • 17

Nos bastidores
Fernando d’Oliveira Neves, em cima, revela
pormenores daquele “que deve ter sido
dos jantares diplomáticos mais
extraordinários na história das Relações
Internacionais. Uma loucura”

MIGUEL MANSO

Jaime Gama em Camberra.


Fevereiro, de 1998


Como foi a visita à Austrália?
Foi uma iniciativa do ministro Jaime Gama,
que quis visitar Camberra e Wellington
para dialogar com os seus homólogos da
Austrália e da Nova Zelândia. Fomos daqui
a Londres, de Londres a Banguecoque e de
Banguecoque a Sydney sem dormir — foi
quando se deu a conversa com Konis
Santana. Depois partimos para Camberra,
onde Ænalmente dormimos. O objectivo era
falar com os australianos sobre Timor. Na
altura, o ministro dos Negócios
Estrangeiros da Austrália era Alexander
Downer e havia várias questões a debater.
Por causa de Timor, a nossa relação com a
Austrália era péssima. Era quase pior do
que com a Indonésia! Até porque os
australianos eram de uma arrogância
insuportável e havia uma questão que nos
estava a preocupar: embora a Austrália
fosse o único país que reconhecia a
integração de Timor na Indonésia,
recusava-se, por pressão indonésia, a dar
asilo político aos timorenses que fugiam de
Timor, alegando que, como eles eram
portugueses, não careciam de asilo político
num terceiro país. Isto era uma
perversidade levada ao extremo.
Reconheciam a anexação, considerando
que os timorenses eram indonésios, mas c


quando estes se iam refugiar na Austrália,
respondiam que eram cidadãos
portugueses e, portanto, não precisavam
de asilo. Essa era uma das questões que
queríamos conversar com eles.
O Ministério dos Negócios Estrangeiros —
ou pelo menos o sítio onde nos reunimos
com os australianos — era no edifício do
Parlamento. O ministro teve um encontro
com uma comissão do Parlamento
australiano e depois tivemos o encontro com
os australianos, que decorreu sob uma certa
tensão: discordámos mais ou menos em
tudo. Tínhamos preparado uma conferência
de imprensa que os australianos não
queriam que Æzéssemos.
Porque sabiam que ia surgir a pergunta
sobre Timor...
Nós insistimos e eu tive o cuidado de garantir
que a pergunta ia ser feita.
Como é que fez isso?
Tive o cuidado de contar a história do asilo a
um jornalista português que estava em
Sydney e seguia a visita. O jornalista faz a
pergunta e o ministro Jaime Gama denuncia
esta situação, dizendo que a nossa intenção
não era que os timorenses fossem
portugueses e que os timorenses podiam ser
da nacionalidade que quisessem. Só seriam
portugueses os timorenses que tivessem a
possibilidade de expressar essa vontade. Nós
já não éramos uma potência colonial.
Éramos a potência administrante, o que não
é a mesma coisa. Qualquer timorense

nascido em Timor podia pedir a
nacionalidade portuguesa, mas não a tinha
automaticamente.
A pergunta foi sobre o asilo e se os
timorenses eram portugueses?
Sim: se era verdade que os australianos
consideravam que os timorenses eram
portugueses. A resposta de Gama causou
uma fúria de grandes proporções no Sr.
Alexander Downer. Temos a reunião em
Camberra, a seguir a conferência de
imprensa e depois estava marcado um jantar
— tudo no mesmo edifício. Mas com a
conferência de imprensa, que eles não
queriam que se Æzesse e que já os tinha
deixado furiosos, atrasámo-nos. Chegámos à
sala de jantar com 20 minutos de atraso e
Downer tinha-se ido embora, numa
manifestação de desagrado.
Depois lá voltou, sentámo-nos à mesa e
começou uma discussão que se ia tornando
mais confusa à medida que os participantes
australianos iam saboreando um magníÆco
vinho local. Estava o ministro Downer, o
secretário-geral do Ministério dos Negócios
Estrangeiros australianos, o chefe de
gabinete e outros directores-gerais, e começa

uma discussão sobre como é que se poderia
fazer uma consulta “assim e assado”. Eles
falavam cada vez mais e, à medida que se ia
pensando em possíveis soluções para o
problema, eles iam-nos atacando por causa
da nossa “inÇexibilidade”, por não
querermos “reconhecer a realidade”. Nisto,
dão-nos aquele mapa centrado na sua
região, em que por cima da Austrália está
uma coisa gigantesca que é a Indonésia.
Explicaram as circunstâncias das relações
entre a Austrália e a Indonésia, o vizinho
mais importante. Naturalmente, não se falou
de nada que fosse útil em relação ao petróleo
— os indonésios compraram o
reconhecimento da Austrália através de
concessões nas fronteiras e na utilização das
reservas de petróleo no mar de Timor.
A certa altura, aquilo começa a tomar
proporções imprevisíveis, Downer começa a
irritar-se e diz: “Vejam o que tentámos fazer
nas Filipinas!” — no conÇito secessionista nas
Filipinas tinha havido uma intervenção
australiana para se conseguir fazer uma
espécie de consulta às populações. “Porque
é que não seguem o mesmo caminho?” Eu
respondi: “Sr. ministro, o que está a dizer é
muito importante para nós. Eu gostava de
saber exactamente o que é que vocês Æzeram
nas Filipinas.” E ele: “Não me venha falar das
Filipinas!” Ele tinha acabado de falar no
assunto e tem o descaramento de me
responder assim! No Æm, o chefe de gabinete
dele veio oferecer-me os seus contactos e
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