Público - 25.08.2019

(ff) #1

18 • Público • Domingo, 25 de Agosto de 2019


disponibilizar-se para nos falar sobre as
Filipinas. Um absurdo.
A coisa cada vez se apresentava pior, eles
falavam de tudo o que faziam no apoio ao
povo timorense e diziam que a única coisa
que nós fazíamos era criar problemas e
ilusões, ao ponto de o secretário-geral do
ministério australiano se virar, não sei se
para mim se para o ministro Gama, e dizer:
“Em cada tiro de um indonésio que mata um
timorense, quem puxa o gatilho é Portugal.
Vocês criaram nos pobres timorenses a
convicção de que um dia podem ser
independentes. É por isso que há repressão
indonésia.” O nosso ministro, “à Gama”,
enquanto eles se irritavam, nos insultavam e
discutiam todos ao mesmo tempo, comia
calmamente o seu biÆnho, sem olhar para
eles, nem lhes responder. No Æm, quando
saímos, Gama disse: “Quanto mais eles se
irritavam, mais impassível eu estava.” Ao
lado dele, no jantar, o tal secretário-geral
batia-lhe no ombro e dizia: “Mas nós damos
dinheiro aos timorenses! Quanto é que vocês
lhes dão?! Diga lá!” Gama nem olhava para
ele. Aquilo acabou neste ambiente. Quando
nos levantámos, o ministro bateu nas costas
do outro e disse-lhe: “Damos muito, não se
preocupe.” E lá nos fomos embora depois de
um jantar que deve ter sido dos jantares
diplomáticos mais extraordinários na
história das Relações Internacionais. Uma
loucura. De resto, limitámo-nos a discordar
— naquele momento, não lhes passava pela
cabeça a hipótese de aceitar uma situação
que pudesse criar problemas entre eles e a
Indonésia.
Quem estava nesse jantar?
A delegação portuguesa era constituída
pelo ministro Jaime Gama, João Salgueiro,
na altura director-geral político do MNE,
Francisco Ribeiro Telles, chefe de gabinete
de Gama, e, julgo, Horácio César, assessor
de imprensa, e eu. Do outro lado estava o
ministro Alexander Downer, o
secretário-geral do ministério, o director
político, o chefe de gabinete, e
provavelmente mais gente que não recordo.
Uma mesa de doze pessoas, talvez.
Jaime Gama não disse uma única
palavra durante o jantar?

A partir do momento em que começou
aquela loucura, não muito. Ele tem aquela
forma de estar muito serena,
chamávamos-lhe o Dalai Gama. Jorge
Sampaio disse-me uma vez em Dublin: “O
Dr. Gama tem uma qualidade que eu invejo:
só diz o que quer.” Se perguntar a Gama a
que horas é o almoço amanhã e ele não
quiser responder, vai responder
perguntando-lhe o que acha dos insectos da
Malásia do século XVII ou se gosta de uma
música qualquer. É assim, nada o
incomoda. Sampaio dizia uma coisa que eu
percebo perfeitamente: “Com os
jornalistas, eu acabo sempre por dizer o
que não quero, porque eles insistem tanto
que a certa altura eu tenho pena deles e
sinto vergonha se não responder.”
Tenho uma admiração extraordinária por
Jorge Sampaio. Ele tem uma relação com o
exercício de funções políticas que é como
devia ser no mundo moderno. Nem é um
sacrifício — como Salazar, coitado, que
queria estar em Santa Comba Dão — nem é
pelo poder. É uma relação iminentemente
ética, mas descontraída. De serviço à
comunidade a que pertence. Não de poder,
de abnegação, sacrifício ou heroísmo. É uma
visão inteligente que reÇecte o melhor dos
valores ditos ocidentais. Lembro-me de ele


contar que, já depois de ter sido eleito
Presidente, estava num sítio qualquer atrás
de Mário Soares, que lhe dizia: “Ó homem,
chegue-se aqui para a frente.” E ele
respondeu: “Deixe estar, que eu cheguei
aonde cheguei estando aqui atrás.”
Depois fomos a Wellington, onde
praticamente só trocámos impressões. A
Nova Zelândia provavelmente não
acreditaria que o nosso objectivo fosse
alcançável, mas também não era questão
que os preocupasse. A primeira coisa que o
ministro dos Negócios Estrangeiros
neozelandês diz a Gama é: “Então, eles
foram muito chatos? Os tipos são
insuportáveis!” Disse isto a rir-se, com um ar
muito simpático. Depois tivemos uma
reunião na qual ele nos disse que o peso de
Timor na opinião pública australiana e
neozelandesa — que tinham uma ligação com
Timor que os outros países não tinham, por
causa da II Guerra Mundial — era tal que,
quando ia ao estrangeiro, a primeira coisa
que os jornalistas lhe perguntavam à
chegada a Wellington era se tinha falado com
o seu interlocutor sobre Timor e sobre os
direitos humanos em Timor.

Quem conseguiu a independência?


Há várias teses para o sucesso do acordo
de 5 de Maio: a “feitiçaria africana” de
KoÆ Annan, a queda de Suharto, a
sabedoria e perseverança da diplomacia
portuguesa, a proposta de Habibie...
Qual foi o factor decisivo?
Um colega meu dizia: “A nossa sorte foi que
nesta altura a Nossa Senhora de Fátima
entrou para a carreira!” Houve uma
conjugação de factores fundamentais. Se
olharmos exclusivamente para as
negociações — e não para o processo como

um todo — houve um factor decisivo:
termos feito um diagnóstico claro das forças
negociais em presença (fazíamos uma
preparação exaustiva para cada reunião) e
termos sabido esperar e aproveitar uma
conjuntura internacional favorável, quase
única.
O que pesou mais nas negociações? A
argumentação ÆlosóÆca — a ideia de que
se tratava da aÆrmação da identidade
de um povo e não de um movimento
contra a Indonésia — ou a lógica
cartesiana, onde o direito prevalece?
A lógica cartesiana foi útil na medida em
que estávamos a negociar com um ministro
e um diplomata que, embora fossem
orientais, tinham uma larguíssima
experiência de vida, cultura e valores
ocidentais. Mas também foi positivo não
termos, em nenhum momento, insistido
excessivamente nessa linha. E termos
conseguido compreender a capacidade
indonésia de olhar para a realidade de uma
forma mais “aberta”, com várias
veracidades e possibilidades, onde as coisas
não precisam de ser sempre “a preto e
branco”, e onde há situações intermédias
que podem convir a toda a gente.
Ana Gomes, que trabalhou neste dossier
durante anos, diz que um dos factores
decisivos para o sucesso das
negociações foi Portugal ter sugerido
que as propostas que levaram ao acordo
fossem feitas em nome da Indonésia,
mesmo quando era Portugal ou a ONU a
pôr a ideia em cima da mesa. Concorda?
Mas eu Æz essa proposta quando o processo
já tinha assumido uma determinada força,
em que salvar a face da Indonésia era
fundamental. Vivemos num mundo com a
obsessão da transparência. A transparência
é uma coisa muito bonita, mas pode fazer
muito mal, porque nas negociações
internacionais, os representantes de cada
Governo podem dizer e assumir certo tipo
de acordos com a condição de isso não ser
visível, de não se saber no seu país. Para
não ser visto como uma cedência, para não
ser visto como fraqueza, para não ser visto
como falta de patriotismo...
Logo no início das negociações, comecei
a perceber que tudo o que eu propusesse
abertamente nas reuniões tripartidas ia ser
rejeitado pela Indonésia. E tudo o que os
indonésios propusessem ia ser rejeitado por

nós. A reacção natural é de desconÆança.
Até que, a partir de um certo momento,
comecei a dizer às Nações Unidas, nas
reuniões bilaterais, que quando Æzéssemos
propostas com as quais eles concordassem,
deviam apresentá-las à Indonésia como se
fossem deles. A maior parte das propostas
que Æz acabaram por ser “compradas”. Eram
as Nações Unidas que, de forma mais ou
menos clara, faziam essas propostas à
Indonésia nas reuniões bilaterais que tinham
com eles, fazendo assim com que não
parecessem uma cedência indonésia, mas a
aceitação de ideias da ONU.
Mas há um momento em que começa a ser
muito difícil que a Indonésia não achasse
que estava a perder. E então sugeri a Marker
que propusesse à Indonésia que as propostas
da ONU — ou as que nós lhes transmitíamos
— fossem apresentadas pela Indonésia como
se fossem suas. É o que acontece quando
[Ali] Alatas quer saber se o regime de
autonomia era para ser deÆnitivo ou
transitório. A proposta da autonomia
transitória que estávamos a negociar — e que
era o oposto do que a Indonésia pretendia —
era de Portugal, mas apareceria como sendo
da Indonésia, o que lhes salvava a face. Foi o
que acabou por acontecer quando aparece
Habibie... Sendo eles a fazer a proposta, a
“vitória” era da Indonésia. A própria
imprensa portuguesa achava, quando a
Indonésia fazia uma proposta que ia ao
encontro do que nós queríamos há 25 anos,
que Portugal ia atrás de Alatas! Isso pode ter
sido importante para permitir que as coisas
avançassem, mas não deixa de ser um
pormenor técnico.
Zacarias da Costa, que a seguir à
independência foi ministro dos
Negócios Estrangeiros de Timor-Leste,
diz que “o referendo não foi o resultado
de um longo processo negocial e não foi
o resultado das mudanças no regime
indonésio: foi o resultado de ambos”. É
uma boa síntese?
Sim, é uma boa descrição.
Há diplomatas portugueses que dizem
que o referendo não teve mérito
português porque os indonésios
“Æzeram tudo”. Com bons ou maus
diplomatas, bons ou maus políticos, a
partir do momento em que Suharto cai
e Habibie faz o anúncio de que quer
fazer um referendo, qualquer pessoa
teria conseguido chegar a acordo...
Ignorância. Com esses diplomatas teríamos
perdido no primeiro dia. É preciso não ter
ideia nenhuma do que se passou para dizer
isso. O que nós Æzemos foi conseguir dar a
ideia de que os indonésios Æzeram tudo.
Felizmente são poucos, mas há diplomatas
na carreira portuguesa que são
incompetentes e ignorantes. Se eles pensam
que, se não tivesse havido a iniciativa de
KoÆ Annan de fazer estas negociações, a
Indonésia ia entregar a independência a
Timor por vontade própria, eles que vejam
o resultado da votação na Assembleia
Consultiva do Povo indonésio, já depois da
chegada da INTERFET a Timor: 355 votos a
favor e 322 contra. É uma aÆrmação de
quem nunca leu um livro de História.
Em relação a Jamsheed Marker: na
publicidade ao seu livro, a síntese diz
que ele foi o responsável por ter mantido
os ideais da ONU at the forefront das
negociações. Concorda com este retrato?
Ele teve esse papel?
Sim. O que é natural, uma vez que estava a
representar as Nações Unidas. É um homem

PETER MORGAN/REUTERS
Free download pdf