Público - 25.08.2019

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Público • Domingo, 25 de Agosto de 2019 • 21

a geologia, a climatologia, a paleontologia, a
paleoantropologia, a paleozoologia e a paleoe-
cologia — que conformam o novo campo de
conhecimento. E pôs de forma inédita o pro-
blema do relativismo da espécie humana e a
questão central do tempo, quando o tempo
prometia acelerar-se e escasseava.
A Pré-História cumpre uma função genea-
lógica e generativa, utópica e crítica no seio
da modernidade, produzindo uma desfami-
lizarização (ou descolagem) relativamente aos
conceitos de presente e de História que sus-
tentam o evolucionismo e o positivismo, num
reencantamento do mundo uniformizado do
capitalismo industrial. Assim, tanto a técnica
da colagem como a estratégia da montagem
(partilhada com o novo ofício do cinema)
emergem como as formas mais bem posicio-
nadas para traduzir a sensibilidade do novo
tempo e libertarem o inconsciente da pintura.
O estudo preparatório, a notação e o fragmen-
to ganham, no contexto moderno, a legitimi-
dade e a autonomia para um diálogo, em pa-
ridade, com a grande tradição das imagens.

“Arte pela arte”


Uma exposição que aborda a poética da Pré-
história encara necessariamente a indetermi-
nação das origens, os seus eclipses e hecatom-
bes, a parcialidade dos materiais, a vertigem
da transitividade e da destruição que assaltam
particularmente o homem na era da veloci-
dade, da hiperperformatividade tecnológica
e do acidente em larga escala. Não por

Q


uando o Centro Georges
Pompidou foi inaugurado em
1977, o projecto havia enfren-
tado uma alguma contestação
pública e o edifício de Renzo
Piano e Richard Rogers era
depreciado como uma reÆna-
ria de petróleo num “ quartier
du vieux Paris ”. Cem anos antes da ediÆcação
do Pompidou, a construção da Paris moder-
na sob o Segundo Império (1852-1870), num
plano urbanístico de ambição romana con-
duzido pelo barão Haussmann, obrigou à
demolição de bairros inteiros, ao desmante-
lamento de cemitérios e à trasladação de
milhares de ossadas anónimas para os cor-
redores subterrâneos das catacumbas onde
Æcaram, até hoje, amontoadas. A imaginação
popular compadeceu-se das almas desassos-
segadas dos antepassados e viu-as magoadas,
a vaguearem sem domicílio, dando origem
a narrativas sombrias de inspiração gótica
em que se inclui certamente a do fantasma
da Ópera. A comoção colectiva diante da fú-
ria do progresso é contemporânea do Çores-
cente interesse pelos fenómenos espíritas na
Europa deste período e que são indissociáveis
das origens da fotograÆa. Só no século XXI,
autores como Rosalind Krauss prestaram a
devida atenção — analisando, numa perspec-
tiva sociológica, práticas marginais destituí-
das de vocação artística — a esta história re-
calcada, mas relevante para a compreensão
da evolução do médium fotográÆco.
Em 1977, a Biblioteca de Informação Públi- c

ca e o museu dedicado às colecções de arte
do século XX ocupavam o núcleo do Pompi-
dou, acompanhados do centro educativo, da
programação de artes do espectáculo e do
centro de criação industrial que se pretendia
laboratório de pesquisa em torno da arqui-
tectura, do urbanismo, do design e do meio
ambiente. A maioria dos eixos programáticos
mantêm-se hoje. Mas o Pompidou, tornado
um dos grandes pólos culturais do mundo
americanizado, com a abertura do Centre
Pompidou West Bund Museum em Xangai em
Novembro próximo (depois das antenas em
Metz, Bruxelas e Málaga), é uma máquina ins-
titucional pesada e conservadora, enfrentan-
do, aos 42 anos, os desaÆos do tempo. Por
isto, uma exposição como Préhistoire, une
énigme moderne se mostra tão necessária, para
pensar o horizonte da própria museologia e
medir as dinâmicas que a instituição é capaz
de estabelecer com as correntes mais inova-
doras do pensamento e uma sociedade cres-
centemente policentrada e multicultural.
Préhistoire, une énigme moderne , comissa-
riada por Cécile Debray, Rémi Labrusse e Ma-
ria Stavrinaki, patente de 8 de Maio a 16 de
Setembro, é uma exposição política sobre o
Ocidente, os mitos do capitalismo e os terri-
tórios de sombra abandonados ou reprimidos
pelo ideário da modernidade.
A noção de Pré-História, estabilizada a par-
tir dos anos 1860, é contemporânea da Revo-
lução Industrial, da invenção da psicanálise
e da arte moderna, sendo gradualmente sus-
tentada por novas disciplinas — a arqueologia,

Público • Domingo, 25 de Agosto de 2019 •

a geologia, a climatologia, a paleontologia
paleoantropologia, a paleozoologia e a pale
cologia — que conformam o novo campo
conhecimentoEpôsde formainéditaop

uando o Centro Georges
ompidou foi inaugurado em
9 77, o projecto havia enfren-
adoumaalgumacontestação

ca e o museu dedicado às colecções de arte
do século XX ocupavam o núcleo do Pompi-
dou, acompanhados do centro educativo, da
programaçãodeartesdoespectáculoedo

Repensando o sílex
Na página anterior, quadro do artista
catalão Joan Miró, Peinture , de 1933
(© Succession Miro Adagp, Paris 2019
Philadelphia Museum of Art, A.E. Gallatin
Collection, 1952-61-85); em cima, obra
da dupla Ami Drach-Dov Ganchrow,
um estúdio de design industrial que tem
trabalhado com rochas de sílex (© Ami
Drach and Dov Ganchrow/© Centre
Pompidou, Mnam/Cci, Fotografia :
Audrey Laurans/Dist. RMN-GP)
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