Público - 25.08.2019

(ff) #1

22 • Público • Domingo, 25 de Agosto de 2019


Barceló, Bourgeois e Jetty
Em cima, uma das salas da exposição no
Pompidou, com um diálogo entre uma
obra de Miquel Barceló e um mármore, ao
centro, de Louise Bourgeois (acumulação
de corpos esféricos entre o ninho, o ventre,
o ovo, o falo e a glande); em baixo, trabalho
de Robert Smithson, Spiral Jetty , de 1970
(Centre Pompidou , Musée national d’art
moderne, Paris © Adagp, Paris 2019)

acaso o interesse pela Pré-história e a sua li-
teratura coincidiram com o surgimento do
género da Æcção cientíÆca, num espelhismo,
onde as formas se hibridizam entre o reen-
contro com as pulsões fundadoras do arcaico
e o futurismo de inclinação apocalíptica, num
século que foi descobrindo a facilidade do
extermínio sumário.
No Japão, uma personagem da cultura po-
pular como Godzilla, criada pela produtora
Toho em 1954, encarna o trauma de dois
bombardeamentos nucleares, a experiência
da destruição total, engendrando um imagi-
nário da mutação e de degenerescências or-
gânicas e genéticas que marca profundamen-
te a cultura visual do Oriente. E em 1955, em
La peinture préhistorique. Lascaux, ou la nais-
sance de l’art
, Georges Bataille reconhece na
descoberta destas imagens a ordem de uma
potência absolutamente nova e a jovem res-
posta à morte pela ameaça do conÇito nu-
clear. Préhistoire, une énigme moderne fala-
nos, em 2019, da ressurgência do medo des-
pertado pelo risco do desaparecimento da
espécie humana e da antevisão das catástro-
fes a que a História conduz, como em Untitled
(Human Mask)
, inquietante Ælme de Pierre
Huyghe (2014), com imagens recolhidas por
drones nas ruas desertas de Fukushima de-
pois do acidente nuclear.
O impacto da arte rupestre e do novo corpus
de imagens que a arqueologia traz à luz reve-
lar-se-á uma das forças motrizes para a arte
moderna e contemporânea. À semelhança da
legibilidade incerta dos fragmentos da Pré-
História, também a experiência estética da
modernidade depende do nosso trabalho
emancipado de interpretação. Existirá cedo,
aliás, uma analogia programática do estatuto
ontológico — um signiÆcante Çutuante e a afec-
tação duma potência — da arte moderna com
as duas polaridades do tempo: o novo anun-
ciado por Charles Baudelaire e a obscuridade
muda e penetrante do arcaico. As imagens da
Pré-História surgem como manifestações pri-
meiras do génio humano ligadas à terra, à
vitalidade e ao prazer estético, fundamentan-
do a posição dos modernos contra a ideia do
progresso em arte (continuadora da atenção
dos românticos à criatividade da criança, do
selvagem e do louco) e legitimando a noção
da “arte pela arte”. Alberto Giacometti, o es-
cultor das Æguras de reduzida dimensão, car-
bonizadas, frementes e erguidas diante do
horizonte, considerava toda a sua obra “não
mais evoluída que os seus contemporâneos
de eleição, o homem dos Eyzies e o homem
de Altamira”. (1).
A investigação para Préhistoire, une énigme
moderne
desenvolveu-se em cinco anos, ten-
do início num momento em que, conÆdencia
Cécile Debray na visita guiada em que nos
acompanha, o termo “antropoceno” se en-
contrava longe da actual vulgarização no
debate ecológico. A exposição organiza-se
em três eixos: a Pré-História (objectos do Pa-
leolítico e Neolítico, pintura e gravura rupes-
tres, bífaces, utensílios e estatuária votiva),
a arte moderna e contemporânea (desenho,
pintura, fotograÆa, cinema, instalação e de-
sign) e documentação associada à divulgação
da Pré-História (levantamentos pictóricos,
registos fotográÆcos, reconstituições, produ-
ção literária e artigos em revistas de especia-
lidade), dinamizando um trânsito de saberes
entre a comunidade cientíÆca e os artistas,
da modernidade aos nossos dias. Num en-
trosamento das temporalidades, a exposição
desdramatiza tautologias disciplinares e re-
pensa as actuais condições de possibilidade
da experiência estética e a capacidade de,


talvez, nos libertarmos gradualmente da no-
ção saturada de arte.
Uma exposição desta natureza é um itine-
rário entre pontes e articulações sensíveis que
logo na primeira sala surpreende numa mon-
tagem de tese: na obscuridade, emergem um
crânio de Homo Sapiens (28.000 a.C.) que nos
olha de frente e a pequena tela Die Zeit de Paul
Klee (1933) que convida à aproximação. As
duas Æguras, a uma certa distância e pontual-
mente iluminadas, surgem, no negro, ao olhar
de uma vez, cortantes. E anunciam a vertigem
do tempo e a elipse da caminhada no homem
na Terra que resiste ao entendimento.
Ao longo da exposição, o solo e o Sol serão
os elementos a que sempre se regressa – mas
de um modo diverso do que ocorria numa
outra exposição que fez data no Pompidou,
Les magiciens de la terre , em 1989, em que o
confronto das diversas culturas do globo e a
ancoragem ao lugar se cingia à produção ar-
tística e ao presente. A terra guarda, pelo con-
trário, as marcas indeléveis do tempo, de es-
pécies desaparecidas (como os dinossauros)
e os fósseis. Odillon Redon e Paul Cézanne
surgem aqui como dois artistas singularmen-
te conscientes das questões da topograÆa e
da estratiÆcação geológica que permite uma
leitura sedimentar do lugar. O biomorÆsmo
das formações rochosas em constante trans-
formação conduz Redon a um estudo compa-
rativo entre o mundo mineral e as origens
inscritas na biologia celular; enquanto, para
Cézanne, será uma das razões que o atêm à
observação do Monte de Sainte-Victoire ao
longo de uma vida.
Os procedimentos primários e as tecnolo-
gias emergentes no Paleolítico para o trabalho
da pedra estimulam os gestos de riscar e sul-
car, de onde nascem as gravuras na superfície
da rocha e em que certos autores cedo desco-
brem uma ponte com as práticas urbanas na

actualidade. Brassaï publica o seu primeiro
texto sobre graffiti em 1933 (ano em que Adolf
Hitler é nomeado chanceler da Alemanha,
lembrando o carácter heteróclito das contem-
poraneidades) intitulado “ Du mur des cavernes
au mur d’usine ”, no número 3 da Minotaure
(2), revista animada por escritores e poetas
surrealistas.

Raízes no primitivo


Muitos menires, megálitos e monumentos pré-
históricos com pedra ricamente gravada en-
contravam-se, frequentemente, semienterra-
dos na paisagem por séculos de agricultura
ou encobertos pela vegetação. Em Inglaterra,
são celebrados pelos românticos como um
prolongamento da paixão cultivada pelas ruí-
nas desde William Blake a William Turner. O
espírito inquietante que desprendem nutre,
outras vezes, um nacionalismo que projecta
em Stonehenge (como os franceses em Carnac
ou os alemães em “túmulos de gigantes” num
momento em que se batem contra o imperia-
lismo de Napoleão) os vestígios de uma cul-
tura ancestral heróica.
Em 1929, Tristan Tzara, Robert e Sonia De-
launay, Jean Arp e Sophie Taeuber-Arp visitam
os megálitos de Carnac (V–III milénio a.C.),
alinhados pela orientação do sol e de que Gus-
tave Flaubert zombava (“as pedras de Carnac
são grandes pedras”).
Jean Arp interessava-se pela arte pré-histó-
rica desde os anos 1910 e elegera desde 1917
a forma oval como a que religa o umbigo (ori-
gem biológica) ao Sol (origem cósmica) do
mundo. E os círculos simples, semicírculos,
os círculos concêntricos, as linhas onduladas,
as estrias e as espirais observados nas pedras
de Carnac, mas também no cairn de Gavrinis,
monumento funerário na ilha do mesmo
nome na Bretanha, marcaram intimamente
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