Público - 25.08.2019

(ff) #1
Público • Domingo, 25 de Agosto de 2019 • 23

Crânio, escultura e tela
No topo, crânio de Homo Sapiens (28.000
a.C.), que aparece logo na primeira sala em
diálogo com a tela Die Zeit , de Paul Klee
(1933); ao meio, escultura de Pablo
Picasso, Buste de femme , Boisgeloup, de
1931; em cima, tela de Graham Sutherland,
The Origins of the Land , de 1950-51

Richard Long e em Observatory, de Robert
Morris (1971-72), o artista é inÇuenciado pelas
linhas de Nazca, no Peru, organizadas pelas
disposições da astronomia. As formas arque-
típicas (círculo, espiral, labirinto) da land art
e a comparação recorrente com os megálitos,
túmulos e geoglifos da Pré-História merece-
ram a Rosalind Krauss (de novo) o reparo para
alguma coisa de “suspeito” nesta genealogia
demasiado rápida, apoiada numa “retórica
da reconciliação” com a terra e o mundo na-
tural. Krauss não recusa a familiaridade, mas
considera-a insuÆciente.

Mão e matéria


Na sala “Hommes et Bêtes” descobrimo-nos
no território das relações entre a mão e a ma-
téria, recuperando a reÇexão de André Leroi-
Gourhan (1911-1986), etnólogo, arqueólogo e
antropólogo da techné e da epistemologia que,
com Le Geste et la Parole (1965), inÇuenciou
o pensamento das (ainda chamadas) “ciências
humanas” sobre as dinâmicas entre a psico-
Æsiologia do corpo e o espaço. Numa monta-
gem vizinha do exercício psicanalítico, em
subcamadas temporais dispostas numa estra-
tiÆcação que permite, em corte transversal,
uma leitura contemporânea das intertextua-
lidades e dos vínculos latentes, um conjunto
de esculturas de Henri Matisse, Jean Arp,
Henry Moore, Louise Bourgeois, placas de
bronze gravadas e uma ardósia esculpida por
Joseph Beuys, estatuetas em mármore negro,
branco e rosa pela mão de Brassaï (entre 1940
e 1970) e estatuária votiva a que fomos cha-
mando “vénus” (Vénus de Grimaldi e Vénus
de Tursac, datadas entre 25.000 e 20.000 a.
C., entre outras) encontram-se no mesmo pla-
no de recepção diante do espectador.
Mais adiante, os objectos arché -futuristas
de Ami Drach & Dov Ganchrow, estúdio de
design sediado em Telavive, aprofundam esta
conÇuência de temporalidades. Revisitando
instrumentos da Pré-História “ one size fits all ”
que serviriam diversos propósitos (pelar ani-
mais, confeccionar alimentos, ...) e atraves-
saram mais de um milhão de anos através da
Europa, Ásia, África e América do Norte,
Drach & Ganchrow explora tecnologias de
digitalização, impressão 3D em polímeros e
novos materiais na produção de objectos fun-
cionais à medida da mão humana, numa so-
breposição de cronologias e no esbatimento
das fronteiras disciplinares entre arte, design,
artesanato, tecnologia e indústria. Nunca lon-
ge das questões que André-Leroi Gourhan nos
pôs, antes de Lévi-Strauss, sobre esse “ofício
perdido” — “A perda da descoberta manual,
do encontro pessoal do homem e da matéria
ao nível artesanal, interrompeu uma das vias
de inovação estética individual” (5) — e recor-
dava que no grande arco da produção huma-
na “a esfericidade, a simetria, a platitude, as
superfícies curvas são ao mesmo tempo ra-
cionais quanto à função e sedutoras além da
função”. (6)
Ainda sobre a mão e a matéria, um conjun-
to de delicados sílexes, paus de madeira gra-
vados descobertos em cavernas dos Pirenéus
atlânticos, seixos pintados e uma seta em for-
ma de folha de loureiro são confrontados com
duas telas de grande formato com o levanta-
mento das pinturas rupestres de Mutuko (Zim-
babwe) produzidas pela equipa de Leo Fro-
benius, em 1929. Leo Frobenius, etnólogo
alemão (1873-1938), autodidacta e um dos pio-
neiros da pesquisa de campo, realizou desde
1913 dezenas de expedições do Saara Central
às savanas do Zimbabwe, nas grutas europeias
(França, Espanha, Itália e Escandinávia, de

1934 a 1937), estendendo, a partir de 1938, a
investigação à Austrália e à Indonésia. Auto-
proclamado “arqueólogo da cultura”, fez pro-
duzir pela sua dupla equipa cientíÆca e artís-
tica documentos visuais que registaram in
loco a decoração parietal em aguarelas (por
vezes de escala monumental), que no início
do século passado conhecem ampla divulga-
ção. As telas de Mutuko integraram a mítica
exposição Prehistoric Rock Pictures in Europe
and Africa , no Museum of Modern Art de Nova
Iorque, em 1937, reunindo artefactos da Pré-
História e obras da arte moderna.
Os documentos de Frobenius põem hoje
problemas sobre o estatuto destas réplicas
que transportam a arte rupestre para um
plano bidimensional vocacionado para a exi-
bição, mas o seu interesse em descortinar as
grandes continuidades entre as representa-
ções pré-históricas na Europa e nos outros
continentes, procurando uma trama estética
global e as suas ressonâncias no interior do
arco das grandes durações, ressoa ao fulgor
dos pioneiros. E numa leitura actualizada
emerge a articulação longínqua e fraterna
com Anthropométrie sans titre de Yves Klein
(1960), tela de grande formato numa sala an-
terior, com a impressão de dois corpos femi-
ninos nus produzida durante uma performan-
ce pública e a ressurgência das vénus mile-
nares sem identidade.
A exposição prolonga-se por trabalhos da
modernidade aos mais recentes, incluindo os
decalques de Abel Maître sobre papel dos es-
quemas decorativos do cairn de Gavrinis, em
1866, e as “ frottages ” de Max Ernest; obras de
De Chirico, Alberto Savinio e Hans Belmer; o
artista folk americano Levi Fisher Ames e Jean
Dubuèet que o defendia; a escola espanhola
de Altamira; o Ælme torrencial Les Mains Né-
gatives de Marguerite Duras (1979), que Ælma
em planos-sequência uma Paris ao Æm da ma-
drugada como se se tratasse da origem da hu-
manidade (e discorre sobre a sabedoria animal
do homem das cavernas); um abrigo de Carl
Andre colocado na sua relação com a não-ar-
quitectura; uma caverna de Claudio Parmigia-
ni; a intervenção em barro sobre as janelas do
museu encomendada a Miquel Barceló em
diálogo com um mármore de Louise Bourgeois
(acumulação de corpos esféricos entre o ni-
nho, o ventre, o ovo, o falo e a glande); Tacita
Dean e os irmãos Chapman, embocando numa
câmara escura com Struttura del tempo ; de
Giuseppe Penone (1992) um conjunto escultó-
rico de chão, em terracota, madeira e liana,
parcamente iluminado, e a sós, nesta última
sala, com uma estatueta feminina em mármo-
re de Paros das ilhas Cíclades (2700-2300 a.C.)
que, hierática, anuncia o Æm do silêncio hos-
pitaleiro das imagens mudas, o advento da
escrita e o início do poder da História.


  1. Alberto Giacometti. Le long dialogue avec
    la mort d’un três grand sculpteur de notre
    temps
    , entrevista com Jean Clay (1963),
    Écrits, Paris, Éditions Hermann, 2007, p.



  2. Brassaï, Du mur des cavernes au mur
    d’usine
    , in Minotaure, n° 3-4, Paris, Skira,
    1933, p. 6-7.

  3. Henry Moore citado em Sam Miles,
    British Art: Ancient Landscapes , Londres,
    Paul Holberton Publishing, 2017, p. 6.

  4. Henry Moore, Primitive Art, in The
    Listener, vol. 25, nº 641, 24 Agosto de 1941

  5. André Leroi-Gourhan, Le Geste et la
    Parole,
    Vol. II: Le mémoire et les rythmes,
    Paris, Albin Michel, 1965, p. 223.

  6. André Leroi-Gourhan, ibid ., p. 134.


a tipologia de motivos na pintura de Robert
Delaunay e na obra (incluindo a têxtil e a de-
corativa) de Sonia Delaunay. Em Préhistoire,
une énigme moderne
, o gesso de grande esca-
la Relief Blanc de Robert Delaunay (1935) — que
Cécile Debray assinala como uma obra rara-
mente exposta — apresenta marcas circulares
em decalque de baixo relevo, num jogo com
a inclinação da luz natural que evoca muitas
gravuras da Pré-História que sabemos legíveis
apenas num momento exacto do dia, à luz
rasante do Sol.
Do outro lado da Mancha, o alinhamento
de pedras neolítico em Mên-an-Tol, na Cor-
nualha (e uma pedra perfurada por um círcu-
lo no seu centro), ou o círculo de rochas em
Nine Maidens, no Sudoeste de Inglaterra, so-
brevêm como a Æliação formal para a escul-
tura de Henry Moore e de Barbara Hepworth,
aprofundando o enigma do espaço, do silên-
cio e do vazio. Henry Moore havia visitado
Stonehenge numa noite de Outono de 1921 e
recorda-se sozinho e fortemente impressio-
nado pela experiência do luar que “aumenta
tudo, e as profundezas misteriosas e as dis-
tâncias faziam-no aparecer gigantesco” (3).
Em 1974, publica Stonehenge , uma série de
litograÆas elaboradas a partir de esquissos e
fotograÆas. Moore concluiria: “Toda a arte
tem as suas raízes no primitivo, doutro modo,
torna-se decadente.” (4)
E é ainda de pedras e de terra que trata o
Ælme Spiral Getty de Robert Smithson (1970)
que assinala, no percurso da exposição, a pas-
sagem do Paleolítico ao Neolítico (a “revolu-
ção neolítica” inaugura o sedentarismo, a
agricultura, a criação de gado, a técnica da
pedra polida e as construções monumentais
na paisagem) e da arte moderna ao período
contemporâneo (na inÇexão da Æguração para
a abstracção e o conceptualismo). A land art
e os earthworks são convocados na obra de


PHILIPPE MIGEAT
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