Público - 25.08.2019

(ff) #1
8 • Público • Domingo, 25 de Agosto de 2019

primeiro-ministro desde a primeira hora foi a
sua intenção “escondida” de transformar a
greve num trampolim para a maioria
absoluta. O mais curioso é que esta
interpretação das intenções de Costa teve a
sua origem no Palácio de Belém, antes de se
espalhar como um rastilho no debate
mediático, como se fosse atribuição
presidencial a análise política dos
acontecimentos e não o zelo pelo bom
funcionamento das instituições. É, de novo,
um salto demasiado grande para merecer
alguma credibilidade. Esta greve comportava
um enorme risco para o Governo, justamente
porque estamos em vésperas de eleições. A
sua evolução era absolutamente imprevisível.
Tudo poderia correr bem, como até agora
correu, mas também tudo poderia ter corrido
mal. Qualquer manifestação de violência por
parte dos grevistas ou qualquer excesso do
uso da força por parte do Governo poderia
facilmente gerar uma escalada que em nada
beneÆciaria os objectivos eleitorais do PS.

2. Houve também quem acusasse António
Costa de “thatcherismo” ou de encarnar uma
nova versão de “socialismo musculado”, pela
dureza com que tratou os sindicatos,
lembrando o tempo em que Margaret
Thatcher chegou ao poder (1979) e enfrentou
uma vaga de greves desencadeadas pelas
poderosas trade unions britânicas que, na
altura, tinham a força necessária para ditar a
chuva e o bom tempo. Só quem não se lembra
das imagens de Londres, com o lixo
acumulado nas ruas a chegar ao primeiro
andar dos prédios e o aquecimento das casas
em risco, é que não compreende as razões
pelas quais o pêndulo virou rapidamente em
sentido contrário. Como acontece em
democracia, o resultado Ænal foi um novo
equilíbrio entre o poder dos sindicatos e o
normal funcionamento da sociedade, que não
pôs em causa a
democracia britânica
e o seu Estado de
direito. Aliás, só com
Tony Blair, em 1997, o
poder dos sindicatos
perdeu o seu último
reduto, quando o
então líder do New
Labour pôs Æm a uma
cláusula dos estatutos
do partido que dava
às trade unions um
poder enorme sobre
a escolha dos seus
líderes em congresso,
através do controlo
de uma parte
substancial dos votos.
Os sindicatos nem
sempre têm razão. O
seu papel não deve


Jornalista. Escreve ao domingo
[email protected]

Teresa de Sousa
Sem Fronteiras

Sobre o direito à greve


e o significado das palavras


1.

Independentemente da justiça
das reivindicações salariais dos
motoristas de materiais
perigosos, o debate que se gerou
em torno desta greve e da forma
como o Governo lidou com ela
merece alguma reÇexão. Sobre
os novos sindicatos que fogem ao
controlo das velhas centrais
sindicais, sobre o direito à greve,
sobre a utilização de serviços mínimos ou a
requisição civil por parte do Governo ou
sobre o comportamento dos partidos à
esquerda e à direita.
No calor dos acontecimentos, é natural que
se procurem novas palavras para tentar
caracterizar as novas realidades e os novos
fenómenos sociais com que nos
confrontamos, num tempo de profundas
transformações como aquele que vivemos
hoje. É natural, mas também contém seus
perigos.
Nas últimas semanas, neste país
relativamente tranquilo e ainda a coberto da
vaga de populismo que varre os nossos
parceiros europeus, a tentação de classiÆcar
de “populista” o comportamento do Governo
foi, aparentemente, irresistível.
António Costa foi o alvo principal da
acusação, ou não fosse ele o primeiro
responsável pelo que se passa no país, de bom
ou de mau. Se levarmos em conta que
estamos em vésperas de eleições legislativas,
nas quais o que está em causa para os partidos
da oposição, à direita como à esquerda, não é
tanto ganhá-las, mas reduzir ao mínimo a
quase certa vitória do PS, a crispação política
e mediática em torno desta greve é
compreensível. Mas não justiÆca tudo. Houve
quem comparasse António Costa ao seu
homólogo britânico, Boris Johnson,
justiÆcando a comparação com o facto de
aparecer constantemente em público durante
a crise dos combustíveis, apresentando-se
como o garante “da lei e da ordem”,
alegadamente como tem feito o
primeiro-ministro britânico. Daqui até
concluir que Portugal não precisa de esperar
pelo surgimento de um partido
verdadeiramente populista, porque já tem
um governo populista é um salto demasiado
grande para que esta acusação possa ser
levada a sério.
A outra acusação recorrente ao

condicionar a independência dos partidos
políticos.

3. Convém olhar para as coisas com alguma
frieza. O direito à greve, como qualquer outro
direito, não é absoluto, porque não há direitos
absolutos em democracia e todos eles têm os
limites que a lei impõe, deÆnidos a partir do
interesse geral. As greves não são todas iguais,
justamente pelo impacto nulo ou
desmesurado que podem ter na vida
colectiva. A maioria das greves visa penalizar
os patrões de uma determinada empresa ou
sector da economia, para os obrigar a
negociar em condições mais equilibradas com
os trabalhadores. Há greves, como as dos
transportes públicos, que afectam muito mais
gente, mas são geralmente feitas contra o
Estado, que é o proprietário dessas empresas.
São uma forma de pressão bastante eÆcaz
pela elevada perturbação que causam, mas
não põem em risco nem a segurança das
pessoas nem a economia nacional. A greve
dos camionistas de matérias perigosas,
decretada por tempo indeterminado — é bom
recordá-lo — tem a capacidade para afectar o
conjunto da economia e a vida de todos os
cidadãos. Pode espalhar facilmente o caos no
funcionamento normal da sociedade. Pode
pôr em risco a segurança fundamental das
pessoas, nomeadamente aquela que diz
respeito ao socorro imediato. Ao ser
convocada para Agosto, poderia ter afectado
o legítimo direito ao gozo de férias de muitos
portugueses. Dir-se-á que uma greve tem de
prejudicar alguém para ter resultados. É
verdade. Mas prejudicar toda a gente não é a
mesma coisa que prejudicar os empresários
deste ou daquele sector ou o próprio Estado,
no seu normal funcionamento.
Imagine-se o que aconteceria se, por
hipótese, alguém tivesse morrido por falta de


Tudo poderia
correr bem,
como até agora
correu, mas
também tudo
poderia ter
corrido mal

assistência, provocada pelo efeito
descontrolado da greve. De quem seria a
responsabilidade? A quem toda a gente
apontaria o dedo? O Governo tinha o dever de
a encarar desta maneira e era sua
responsabilidade garantir a segurança e a
liberdade das pessoas e as condições mínimas
de funcionamento da economia, de forma a
não lesar muita gente pelo direito de alguns a
exigir melhores condições de trabalho. Podia
ter feito de outra maneira? Em teoria,
poderia. Com que consequências? Não
sabemos. Jogou pelo seguro e obteve os
resultados pretendidos. Evitou o caos que
estava ao virar da esquina. As negociações
foram o caminho encontrado por dois dos
sindicatos envolvidos directa ou
indirectamente no conÇito. A natureza
política da greve do sindicato nacional dos
motoristas de cargas perigosas Æcou
demonstrada para além de qualquer dúvida.
E é aqui que também vale a pena reÇectir.
Este novo sindicalismo independente tem a
sua razão de ser: libertar-se das velhas
centrais sindicais que Æzeram muitas vezes
dos sindicatos a correia de transmissão dos
objectivos políticos deste ou daquele partido.
Mas isso não signiÆca que os seus motivos
sejam inocentes. Ficou mais do que provado
que Pardal Henriques, o porta-voz do
sindicato, quis fazer da greve um trampolim
para as suas ambições políticas. Não teve
grande sucesso. Com Marinho e Pinho não irá
certamente muito longe e isso apenas abona
em favor do sistema partidário português.

4. O direito à greve Æcou afectado? A
direita deve regozijar-se com a forma como
um governo de centro-esquerda lidou com
esta greve, abrindo um precedente?
Responder que sim é mais uma vez
demasiado fácil. Haverá greves noutros
sectores de actividade sem as implicações
desta, que a lei protegerá contra qualquer
abuso de poder dos governos. Haverá
governos de diferentes cores políticas que
reagirão à sua maneira à contestação social.
Em democracia é assim mesmo, desde que
tudo acontece num quadro legal
estabelecido. O direito à greve não está em
risco. O verdadeiro risco que as democracias
enfrentam é o dos movimentos populistas e
nacionalistas que tiram partido do medo do
futuro, do agravamento das desigualdades
ou do enquistamento das elites políticas em
torno de velhas ideias. Ou do caos social, no
caso de se instalar com demasiada
frequência. Apesar de tudo, o cuidado dos
partidos políticos em manterem alguma
distância desta greve é revelador de que
percebem os riscos que as democracias
atravessam e preferem não ir por aí.


Esta greve comportava um
enorme risco para o Governo,

justamente porque estamos
em vésperas de eleições

ESPAÇO PÚBLICO

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