- Reinaldo José Lopes
SÃOCARLOS(SP)Cadaafrica-
no escravizado que cruza-
vaoAtlânticorumo ao Bra-
sil entreosséculos 16 e 19 po-
diareceberatécincomarcas
distintas,feitascomferroem
brasa, diretonapele.
Avia-crúciscomeçavacom
acicatriz criada pelo trafican-
te de escravos quecapturava
apessoa.Depois vinhaoselo
da Coroa portuguesanopeito
direito, uma cruzque indica-
va obatismodocativo, amar-
ca dovendedor queodespa-
chavaparaonavio negreiro
e, àsvezes, adodono defini-
tivo, já no portodechegada.
Detalhescomo esses,capa-
zesdeconferir vividez aofe-
nômeno históricodocativei-
ro,estão portoda parte no pri-
meirovolumeda trilogia “Es-
cravidão”,deautoria do escri-
torejornalista LaurentinoGo-
mes, que acaba de ser lançado.
Em mais de 500 páginas,Go-
mesreconstróiafase inicial do
tráficotransatlântico de seres
humanos, do primeiroleilão
de africanosem soloportu-
guês, que aconteceu em 1444 ,
no então vilarejo de Lagos,
no Algarve,àmorte do líder
quilombola Zumbi em 1695.
Aexemplo do que sevêna
primeiratrilogia históricado
escritoravirar best-seller —a
série “ 1808 ”, “ 1822 ”e“ 1889 ”—,
otexto, de sabor jornalístico,
equilibraapesquisa sobremi-
núciasdocotidianocomocon-
textosocialeeconômicomais
amploquefezdaescravidão a
basedacolonização europeia
em boaparte das Américas.
OBrasil, onde desembar-
couquase metade dos 12 , 5 mi-
lhõesdeafricanos trazidos pa-
ra ocontinente,abrigatam-
bémomaiorporto negreiro
da história,oRio deJaneiro.
Anovasérie,entretanto, di-
fere da anterior pelofatode
quepoucagentesedispõe a
entrar em brigaspolíticas aca-
loradas porcausa de domJoão
6 ºoudomarechalDeodoroda
Fonseca. Questionarolegado
daescravidão,por outrolado,
éumelementoimportante da
ascensãodegruposde direita
nosúltimosanos,tantoemli-
vros quantonas redes sociais.
Navisão deGomes, embora
alguns dos argumentos usados
por esses grupossejamverda-
deiros—comoaantiguidade
eaimportância do tráficoes-
cravistanaÁfricaantes que
os portugueses pusessemos
pés nocontinente—,nada dis-
so mudaoimpactodaexpan-
são europeia, que industriali-
zouosistema, porassimdizer.
“Milhõesforamescravizados
paraatenderavoracidade da
demandanoNovoMundo, em
especialematividades de mão
de obraintensacomoamono-
culturadecanaeamineração.
Émuitopreocupante atribuir
aos africanosaprópriaescra-
vidão”, diz. “Eotráficoatlân-
ticocria algoque nãoexistia,
eque estánaraiz doracismo,
queéaideia de queescravos
são ‘naturalmente’ negros.”
“O projetodepoder em an-
damentoédedesconstrução
de direitos dos descenden-
tesdesses escravos, quefo-
ramconstruídosaduras pe-
nas nas últimas décadas de
democracia.Eéclaroque é
um discurso que dávoto.Ago-
ra,oque eutentofazer,com
uma linguagem simples, jor-
nalística,éjogaralgumaraci-
onalidade nessedebate,nes-
sa feridaaberta”, argumenta.
Paraquem afirma que os
portugueses nem precisa-
vampôr os pésnaÁfricapa-
ra arrematarsuas levasdees-
cravos, porexemplo,ocaso
doreino do Congo, primeira
monarquia europeizada da
região,ébastanteinstrutivo.
Como narraolivro, os no-
bres dessereino—que, ape-
sar do nome, naverdade
correspondia, em sua mai-
or parte, ao nortedaatual
Angola— buscaram se aliar
aos portugueseseabraçar a
fé católicanocomeçodo sé-
culo 16 .Seus soberanos ado-
taramnomescomo domJo-
ãoedom Manuel,passaram
aler as vidas dos santos e
construíramcatedrais.
Onovostatus cristão pro-
tegeuoreino dasincursões
de traficantes de escravos até
meados do século 17 ,quan-
do trêsgovernadores brasi-
leiros de Angola —Salvador
deSá,JoãoFernandes Vieira
eAndréVidal deNegreiros—
provocaramconflitos entre
oreinodoCongoeseus do-
mínios,comoobjetivode
angariar maiscativos.
Na guerraque se seguiu,o
exércitoliderado porNegrei-
rosmatouopróprioreicon-
golês,oque permitiuaexplo-
raçãoescravistadaregião.
E, claro, há detalhes impor-
tantes sobreaprópria Ango-
la, únicoterritório africano
detamanho substancial on-
de invasores europeus se ins-
talaram em definitivojáno
século 16 eláficaramaté o
século 20 ,passandoacon-
trolar,empoucas décadas,
todos os aspectos do tráfi-
coescravista,dacaptura em
guerrasesequestros ao em-
barque nos navios negreiros.
Oprimeirovolumedanova
série chegaàslivrariascomti-
ragemde 100 milexemplares
(a trilogia anteriordeGomes
jásomacercade 2 , 5 milhões
de livrosvendidos em três pa-
íses).Oséculo 18 ,augedotrá-
ficoescravista, seráotema do
segundovolume,compubli-
caçãoprevistaparaoano que
vem, enquantoaterceiraparte
da série tratará do século 19 e
do movimento abolicionista.
“Quem mederaque os dois
próximos estivessem pron-
tos. Asorteéque pelomenos
apesquisa jáestáfeita”,brin-
ca Gomes, que afirmaterlido
maisde 200 livroscomo pre-
paração paraotrabalho.“Já
tenho muitoscopiões [rascu-
nhos] dotextonomeu compu-
tador,aquelacoisa de jornalis-
ta.Oterceirovolumedeveme
dar menos dor decabeça por-
queéumperíodocomoqual
eu já estavabemfamiliarizado
porcausados outros livros.”
crítica
Escravidão-Volume I
*****
Autor: LaurentinoGomes.
Ed.: GloboLivros. R$ 49,90 (504 págs.)
- ThiagoAmparo
“Personagens, dataseacon-
tecimentos históricos sãofer-
ramentas deconstrução de
identidade.Funcionamcomo
âncoras lançadas no passado
nas quais procuramos alicer-
çarvalores,convicções, so-
nhoseaspirações do presen-
te,enquantopreparamos a
jornada rumo ao futuro.”
Éassim queojornalista
LaurentinoGomesnosre-
sume sua visão da história
em “Escravidão–Volume I”.
Oportuno num momento
em quefatoshistóricos são
esquecidos ouconvertidos
em merasopiniões,olivronos
proporciona um emaranhado
de detalhes sobreaorigem na
Áfricadaescravidão negraese
estende porcercade 250 anos,
das primeirascapturas dees-
cravizados por portugueses
nacostaafricanaatéamorte
de ZumbidosPalmares.
Sendo hercúleooesforço,
Gomesorealizacompotência.
Navega pelahistória, narran-
Marcasdomal
Novasérie de livros do best-sellerLaurentino Gomes narraoshorrores da escravidão e
explicacomootráfico negreiro se tornouabase da colonização europeia nas Américas
dooleilãoetráficodeescra-
vizados,arelação perniciosa
entreeuropeuseaeliteafri-
canaàépocaeoshorrores do
período,eexpõe,como se sob
uma lupa, detalhes que apro-
ximam na escritadojornalis-
ta osfatosdesuadimensão
humanadedorecrueldade.
Entre númerosepormeno-
res, repousaaforça do livro.
LembroaquicomoGomes
descreveocomportamento
dostubarões que mudaram
derota paraseguir os navios
negreiroseseuscorpos joga-
dos ao mar,oucomo dedica
umcapítulo inteiroaos nú-
merosda escravidãonegra.
Ao amor aosdetalhesenú-
meros,Gomescombina sua
declaradaaversãoaanacro-
nismos históricos (termo de-
le).Teme que alguns no Bra-
silatual estejam incorrendo
no errodeler fatosdeentão
comosolhos de hojeenão
de outrora.Eaqui chegaa
conclusões que demandam
análise mais primorosa nos
próximosvolumesdatrilogia
do que defato entreganeste.
Segundooautor,Zumbi dos
Palmares “nuncafoi abolicio-
nista” etinha escravos“captu-
radosnos engenhos vizinhos”;
“miscigenaçãoracial entrea
casa-grandeeasenzala”sóé
mencionadaàluzde Gilberto
Freyre,eomesmo tratamento
édadoateoriasracistas;asori-
gens da escravidão negra per-
petuada por europeus são en-
contradas naexistência de es-
cravosnaÁfrica antes da che-
gada dos portugueses;e“mu-
latoӎuma palavrausadano
livrodeformarecorrente.
Melhorcompreendertais
fatosnão me pareceumes-
forçoanacrônico. Diferenci-
ar que na África escravizados
eramconsiderados prisionei-
rosdeguerra, muitasvezes
sendo livres depois de algu-
masgerações,enão mercado-
ria,como noregime europeu,
nãoéuma distinçãotrivial.
Explorarosfundamentos
de violênciasexual degênero
nos quaissebaseava amisci-
genaçãoeoferecerolhar crí-
ticosobredúvidas etimológi-
caseusocontemporâneoda
palavra“mulato”igualmente
não me parece anacrônico.
a
eee
SExtA-FEiRA, 23 DEAGoSto DE 2019 C1
ConhEça
suCEssos
do autor
‘1808’
( 2007 )
Lançada para
marcar os 200
anos da vinda
de domJoão 6°
eafamíliareal
portuguesa
para oRio
de Janeiro,
fugindo das
tropas de
Napoleão
Bonaparte,
aobrafoi a
primeirade
umanova
safradelivros
sobreahistória
brasileira
voltados parao
grande público
‘1822’
( 2010 )
Continuando
apartir do
momentoem
que‘1808’
tinha parado,
olivronarra
os fatosque
levaram à
independência
do Brasil,que
envolvemum
‘homem sábio,
umaprincesa
tristeeum
escocêslouco’
‘1889’
( 2013 )
Anarrativa
traça os
eventos do
fim do Império
brasileiro. A
obrabusca
recuperar
afigura do
intelectual
Benjamin
Constant,
emboraa
República
tenha sido
proclamada
pelo marechal
Deodoro da
Fonseca
$
Ilustração JairoMalta