Elle - Portugal - Edição 376 (2020-01)

(Antfer) #1

24 elle Pt


a altura desta entrevista, as temperaturas batem re‑
cordes (42,6°C). Nas ruas, as pessoas estão rabugen‑
tas e suadas. Todas, menos Maria Grazia Chiuri. Em
vez disso, ela está sobrenaturalmente calma numa
biblioteca vagamente iluminada nos arquivos da
Christian Dior, na Rue de Marignan, num canto de Paris.
O ar condicionado está a uma temperatura perfeita, enquanto
uma vela Cire Trudon queima ao seu lado.
Chiuri é a mulher que se ri por último. Enquanto nos senta‑
mos para falar sobre as suas mais recentes coleções para a Dior


  • a sublime linha de Couture FW19, que explora a relevância
    do vestuário feminino, e a Cruise 2020, dedicada ao multicul‑
    turalismo –, ela delicia ‑se com os resultados das vendas. Os
    dados apresentados um dia antes de nos encontrarmos, na sua
    última semana de trabalho antes de ir de férias, mostram um
    crescimento nas vendas “excecional”. No entanto, nem sempre
    foi assim. «Quando cheguei à Dior, diziam: “Oh, a Dior é uma
    marca feminina.” E eu respondi: “OK, mas eu preciso é de
    falar sobre a feminilidade dos dias de hoje.” A feminilidade é
    multifacetada», explica ela com o seu sotaque romano.
    A estreia de Chiuri foi feita com uma t ‑shirt que declarava
    “Todos Devemos Ser Feministas”. A frase, que foi tirada do
    discurso de Chimamanda Ngozi Adichie, foi difícil de engo‑
    lir. Primeiro, houve o problema de ser uma t ‑shirt (porque,
    Couture!) e depois, houve um problema com o ativismo. Moda
    comercial e feminismo são mundos diferentes, que nunca devem
    cruzar ‑se. Afinal, quem lhe deu esse direito?
    Chiuri, sorridente e simpática, com uma rara mistura de
    autoridade e humildade, diz que ficou surpreendida, mas
    inabalável. Garante que não chegou à Dior com um plano
    premeditado, mas que estava a responder ao período que se
    atravessava. Até porque, para Chiuri, a moda nunca é apenas
    sobre roupa. «As pessoas disseram ‑me logo: “Tu és uma de‑
    signer ativamente política.” E eu disse: “Eu acho que toda a
    gente é ativamente política.” Ser ativamente político significa
    que pensamos no que compramos, e no que desejamos. Todos
    temos um ponto de vista que é político. Porque é que um
    designer não deveria tê ‑lo também?»
    Enquanto muitos dizem que é impossível para uma marca
    comercial envolver ‑se com o ativismo sem o explorar para obter
    lucro, outros afirmam que não é realista esperar que um artista
    seja criativo dentro de uma bolha. A pintora nova ‑iorquina
    Mickalene Thomas, uma das maiores estrelas do mundo da arte
    contemporânea, chama a Chiuri «feminista e revolucionária».
    Famosa por confrontar identidade e género no seu próprio
    trabalho, colaborou com Chiuri na coleção Cruise 2O2O da
    Dior. «Os artistas sempre defenderam mudanças, provocações
    e comentários sociopolíticos. Os artistas são disruptivos», diz
    Thomas, que descreve o processo de design como instintivo.
    «Eu acho que temos de transpor o que sentimos. E um
    designer explora o modo de vida das pessoas. Então, para criar,


acho que precisamos de refletir sobre estes aspetos», explica
Chiuri, com um aceno da mão que está adornada com grandes
anéis de estilo gótico.
Aos 55 anos, Chiuri exala a confiança e a curiosidade de
uma mulher que viveu uma vida em grande. A indústria da
moda está cheia de histórias de jovens que se transformam
em fenómenos do design, apenas alguns anos após terem ter‑
minado o curso na escola de moda. Mas Chiuri não, ela é uma
mulher que trabalhou durante décadas. Antes de ingressar
na Dior, passou 17 anos na Valentino, subindo na hierarquia
de designer de acessórios a diretora cocriativa (função que
manteve durante oito anos com seu amigo de longa data
Pierpaolo Piccioli). Os dois conheceram ‑se na década de
80, quando Chiuri se formou no Istituto Europeo di Design
(IED) em Roma, onde nasceu e cresceu. Ela recrutou ‑o para
trabalhar ao seu lado no estúdio de design de acessórios da
Fendi, antes de o convencer a juntar ‑se ‑lhe na Valentino, onde
revitalizaram a marca com uma série de carteiras e sapatos
dignos da lista de espera.

conversa continua. Ela fala sobre como as viagens,
os livros, os colaboradores criativos e os dois filhos,
Rachele e Nicolo Regini, abriram a sua mente para
novas formas de pensar. E esta ideia de evolução pes‑
soal surge frequentemente na nossa conversa – e pode
ser rastreada – ao longo do trabalho de Chiuri. “Eu sou uma
mulher diferente, mas o tempo também é diferente”, diz ela.
Estamos rodeadas pelos trabalhos dos ilustres diretores
criativos da casa. Todos homens. Incluindo o fundador,
Monsieur Dior, bem como os titãs que se seguiram: Yves
Saint Laurent, John Galliano, Raf Simons, entre outros. No
meio da biblioteca, cada época é representada por um livro
encadernado que fica num pedestal.
A indústria mudou, consideravelmente, desde a época
em que a moda servia como um catalisador de beleza e esca‑
pismo – com muito tule bordado e cinturas marcadas. Para
começar, muitas das Maisons francesas são agora lideradas
por mulheres (além de Chiuri, a primeira diretora criativa na
história da Dior, há Virginie Viard no comando da Chanel,

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«Eu acho quE toda a gEntE
é ativamEntE política (...)
todos tEmos um ponto dE
vista quE é político.
porquE é quE um dEsignEr
não dEvEria tê ‑lo também?»
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