Época - Edição 1079 (2019-03-11)

(Antfer) #1
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M


esmoantes do lançamento,Merchantsoftruth(Mer-
cadores da verdade), da jornalista americanaJill
Abramson,era atacado.Num livroem defesada verdadee
do jornalismonaera da desinformação,leitoresdas pro-
vas encontraramerrosfactuais banais,comoaidentifica-
ção incorretado gênerode umaentrevistada ou do estado
em que fica Charlottesville. No diaseguinteaolançamen-
to,vieramàtona umadúziade acusaçõesdeplágio,identi-
ficandotrechoscomparáfrasesao pé da letra de reporta-
genseartigos. Abramsonjá corrigiraos errosapontados
nas provas.Reconheceu ter usadoum sistema deficiente
paraassociarpassagensdo textoàs 70 páginasde referên-
cias no final.“As notasnão correspondemàs páginascor-
retasnuns poucoscasos.Não foi intencionaleserá pronta-
mente corrigido”,escreveuem comunicado.“Alingua-
gemestámuito próximanoutros casosedeveriater sido
citadaem aspas no texto. Isso tambémserá corrigido.”
Àquelaaltura,oestragoestava feito.
Resultadode três anosde investigaçãosobreacrise
da imprensaamericana,concebidocomohistóriadefi-
nitivadoimpactodo meiodigitalno jornalismo,olivro
se tornou,em vez disso,oexemplo perfeitodo desleixo
edaempáfiaquelevaramao buracoas empresasde co-
municação egeraram amaiorcrisedecredibilidade
desdeaprofissionalização do ofíciono séculoXIX.La-
mentável,poisninguémmaistalhado queAbramson
paracontar ahistória. Primeiramulheracomandara
redação doNewYork Times,entre 2011e2014,ela en-
frentou odesafiode transformarcabeçasde papel em
cérebrosdigitaissemsacrificaros princípioséticosda
profissão.Foi demitida,segundoaversãonarradano
livro,aoentrar em choquecomdemandas pelapartici-
paçãode jornalistas em novosnegócios,comoconfe-
rências,viagenseprodutospatrocinados,em desafioàs
regrasqueos protegiamhavia décadasde ingerências
da áreacomercial. Outrofator na demissão,diz Abram-
son,foi ela ter sidologradaaaceitar umaremuneração
inferioràdoantecessor,Bill Keller,edepoister proces-
sadoaempresapordiscriminaçãosexual.Ela tomao
cuidadode registrarqueoTimescontestasua versão.

Oacertode contas comos antigos
patrõescompõe os trechosmais
cativantes eprovocadores,massó
diz respeitoaquemse interessa
pelasfofocasdo meiojornalístico.
Orestodaobra,em quepesem as falhas,resiste como
retrato precisodoimpasseatual do jornalismo.Abram-
sonadotouoformato de David Halberstam no clássico
Thepowersthatbe,de1979,relato da ascensão de quatro
potênciasdaimprensa americana. Na versãoparaaera
digital, ela persegue os jornaisTimesePosteossites Buzz-
Feed eVice (de ondepartiramos principaisataquesà
obra). Os mesmodilemasse apresentam,comoimagens
refletidasno espelho,àsempresastradicionais em busca
da destreza digital —TimesePost—eàsnovatas em busca
de credibilidadeeinfluência —BuzzFeed eVice.
Todas progridem, masnenhumase sai bem.TimesePost
adotamum tommenossisudo emaisvisceral. Rompemas
barreiras queantes mantinham as redaçõesestanquesdian-
te dos avanços comerciais. Conquistammilhõesdeassinan-
tes digitais, impulsofinanceiroimprovável comaeleição de
Donald Trumpeseus ataquesàimprensaprofissional. Mas
não resgatam aestabilidadenemaautoridade perdida.Vice
eBuzzFeednãomantêmocrescimento explosivoe, apesar
de conquistasjornalísticas, nãoresolvem oconflito entre a
linguagemtalhadapara jovens eatentativa de projetar uma
imagemsériaao públicoadulto.Sobre as quatro, não ésur-
presa,pairaodomíniodas empresasdedistribuição, em
especial daquelaaque Abramsondedicaum capítulo:o
Facebook.Em virtudede critériosque privilegiamo“enga-
jamento” em detrimento da confiabilidade,averdadeeo
jornalismoficamem segundoplanoem relaçãoàaudiên-
cia. Ofuturodependeráda crisede confiançado próprio
Facebook—para cuja soluçãoapenaspalavras não bastam.

H.G.

[email protected]
@gurovitz

HELIO GUROVITZÉJORNALISTA
EBLOGUEIRODO PORTALG1

ÉDIFÍCILDEFENDER,
SÓCOMPALAVRAS,
OJORNALISMO

MERCHANTSOFTRUTH
JillAbramson,Simon&Schuster
2019|544páginas|US$30
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