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IMAGENS: SHUTTERSTOCK E ARQUIVO PESSOAL
CARMAISSOlSTICADOS%QUEMÏENGANA-
do, o credor, o que está sendo prejudica-
do, é visto como “quem começou tudo”,
recebe as mais improváveis acusações.
$IlCILMENTE AQUELE QUE DEVE MENSA-
lidade em uma escola é inadimplente
porque está insatisfeito. O processo é,
quase sempre, o oposto: é insatisfeito
porque deve; é grosso porque “está com
orabo preso”; é agressivo porque enga-
NADESCONlAPORQUETRAI
O uso da razão a serviço das emo-
ções – como na elaboração de justifi-
cativas para atitudes e decisões que,
no fundo, são condenáveis ou prejudi-
ciais a si mesmo ou a alguém – é um
comportamento padrão em muitas
situações da vida e envolve processos
inconscientes.
Algumas pessoas são particular-
mente talentosas para manipular infor-
mações da forma como lhes convém.
A linguagem é tão poderosa que, ao
ser usada para compor impecavelmen-
te uma falácia, acaba por convencer o
próprio compositor. O bom mentiro-
so, portanto, mente primeiramente a
si mesmo, o que torna o engano mais
difícil de desmascarar.
Isso porque a construção de teorias,
projeção de situações, inferências ten-
denciosas e interpretação distorcida de
fatos serve para esconder, primeiramen-
te de si mesmo, alguns dos sentimentos
mais incômodos: a culpa, o remorso e
a vergonha. São socialmente doloridos,
mais difíceis de serem aceitos.
Afinal, aprende-se que certos sen-
timentos despertam a empatia e o
acolhimento (quem nunca recebeu
amparo social em um momento de
tristeza, rejeição ou decepção?), en-
quanto a culpa é derivada de atitudes
e comportamentos conscientemente
nocivos. Admiti-la é admitir um erro;
e dependendo do tamanho desse erro,
costuma-se fazer de tudo para evitar a
humilhação de reconhecê-lo. Inclusive
repeti-lo. Como na história do Peque-
no Príncipe, em que o bêbado confessa
que bebe para esquecer da vergonha.
entre emoção e conhecimento e entre
a prática e a teoria. (...) A contradição
entre ideias ocorre quando essa distin-
ção não é feita”.
Sobre a distância entre o mundo ilu-
sório e a realidade, o que ele considera
parte normal do processo intelectual
HUMANO ESCLARECE CONmITOS INTERNOS
dolorosos geram pensamentos enga-
nosos que se distanciam gradualmente
dos fatos, o que sempre resulta em an-
siedade. “É como cometer um erro de
um centímetro que resulta em uma dife-
rença de quilômetros no futuro”, ilustra.
Como reconhecer o estado de shi-
sô-no-mujun e voltar a distinguir entre
objetivo e subjetivo? Na terapia japo-
nesa, um dos movimentos necessários
é em direção à dor, até “tornar-se ela
própria”, sem julgamento e sem o ob-
jetivo de eliminá-la, partindo de um
estado puramente subjetivo – como se
entrássemos em um mundo sem espe-
lhos e sem os olhos de outros.
Outra forma de eliminar a dualidade
é partir de uma perspectiva totalmente
objetiva, enxergando a dor “de fora”, se
distanciando dela, como se fosse descre-
ver a própria face frente a um espelho
DEPOISDElTÉ
LAPORTEMPOSUlCIENTE
até se dissolver toda espécie de descon-
forto relacionado ao ego. Um dos meios
para isso é a antiga prática oriental que
vem ganhando mais atenção e reconhe-
cimento no Ocidente: a escrita.
De haicais a ensaios, a busca por me-
táforas e descrições bem traçadas de sen-
timentos complexos possibilita o distan-
ciamento necessário para que possamos
sair do estado de shisô-no-mujun. Seja
qual for o meio, estar disposto a derrubar
as defesas, a reconhecer a verdade e a ver
os fatos com clareza exige coragem, em
um processo nada confortável de reco-
lhimento e autoconsciência.
Michele Müller é jornalista, pesquisadora, especialista em Neurociências,
Neuropsicologia Educacional e Ciências da Educação. Pesquisa e aplica
estratégias para o desenvolvimento da linguagem. Seus projetos e textos
estão reunidos no site http://www.michelemuller.com.br
“Vergonha de quê?”, pergunta o prínci-
pe. “De beber”, responde.
Todas essas formas de fugir da
verdade podem ser resumidas em um
único conceito: shisô-nu-mujun. Mui-
tos dos ensinamentos da terapia Mo-
rita, uma linha oriental de psicoterapia
fundada no início do século, partem de
um vocabulário próprio, relacionado às
emoções e comportamentos. Afinal, se
a linguagem pode nos colocar distan-
te da realidade, com a elaboração de
justificativas, desculpas e teorias, ela
também pode ajudar a identificar essas
armadilhas emocionais.
Em uma definição mais concisa,
shisô-no-mujun designa a contradição
de ideias – a incongruência entre a re-
alidade e as histórias nas quais a mente
se apega por medo, culpa ou pelo de-
sejo de como as coisas deveriam ser.
De acordo com o próprio criador do
termo, o psicanalista e filósofo japonês
Shoma Morita (em Principles of Morita
Therapy, 1998), “existem incompatibi-
lidades entre o subjetivo e o objetivo,
A CONSTRUÇÃO
DE TEORIAS,
INFERÊNCIAS
TENDENCIOSAS E
INTERPRETAÇÃO
DISTORCIDA DE
FATOS SERVE
PARA ESCONDER,
PRIMEIRAMENTE
DE SI MESMO,
ALGUNS DOS
SENTIMENTOS
MAIS INCÔMODOS
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