24 Le Monde Diplomatique Brasil^ M A RÇO 2019
AS ELITES DIANTE DOS “COLETES AMARELOS”
A filosofia do desprezo
Desde sua posse, o presidente francês, Emmanuel Macron, associou diversas vezes as classes populares
a um grupo de preguiçosos incultos e chorões. Assim, ele rompe com a duplicidade dos últimos chefes de
Estado em relação aos menos favorecidos: compreendê-los no discurso, mas negligenciar suas reivindicações,
e, sobretudo, ignorar a dominação estrutural de que são objeto
POR BERNARD PUDAL*
© Flavia Bomfim
J
e vous hais, compris? ”:^1 um dos
slogans escritos com caneta hi-
drográfica em muitos coletes
amarelos condensa em uma fór-
mula a atitude de Emmanuel Macron e
a célebre frase do general De Gaulle,
modelo exemplar do discurso duplo
dos políticos. Para além das múltiplas
reivindicações sociais e fiscais dos
“coletes amarelos”, se há uma cons-
tante, é sua convicção de que as “elites”
desconhecem suas condições de exis-
tência, seu modo de vida e, ainda por
cima, os desprezam. Nas rotatórias das
estradas em que os manifestantes se
reúnem, nos lembramos constante-
mente das “pequenas frases” com as
quais Macron revelou sua visão do “po-
vo” francês: trabalhadores “analfabe-
tos”, destinatários de contribuições so-
ciais que custam “uma grana alta”,
“preguiçosos”, “cínicos”, “extremistas”,
“pessoas que não são nada”, “basta
atravessar a rua para conseguir um
emprego” etc.
À eterna pergunta “O que é o po-
vo?”, o presidente responde: “São
aqueles que se devem educar, até mes-
mo reeducar, aqueles que são refratá-
rios, que se devem guiar, aqueles que
se queixam em vez de tomarem conta
de si mesmos e assumirem responsa-
bilidade, aqueles que, com muita fre-
quência, ‘não são nada’”.
Não saberíamos agradecer-lhe o
suficiente por ter expressado de forma
tão grosseira a filosofia social do mun-
do a que ele pertence, do mundo em
que ele se formou, uma filosofia social
geralmente eufemizada ou reservada
aos círculos de seus pares. É essa mes-
ma visão que Cédric Lomba, por
exemplo, encontra em seu estudo das
fábricas de Cockerill, na Bélgica, sub-
metidas por mais de trinta anos a su-
cessivos planos sociais. Os gestores e
os engenheiros se opõem ali aos tra-
balhadores que eles têm por missão
dirigir, enviar para a pré-aposentado-
ria ou deslocar. Durante as reuniões
ou refeições, eles regularmente evo-
cam o arcaísmo dos trabalhadores,
sua intransigência, as paralisações de
trabalho por ninharias, sua agressivi-
dade diante das reestruturações, mas
também sua imaturidade e sua imora-
lidade quando “gritam”, ameaçam, es-
tacionam de qualquer maneira ou não
respeitam as medidas de segurança.
Eles condenam práticas como o roubo
(incluindo de eletrodomésticos em re-
feitórios ou de equipamentos), as brin-
cadeiras infantis (passar graxa na ma-
çaneta das portas, encher capacetes
com água), a sujeira (nas pias e ba-
nheiros), a devassidão moral (a exibi-
ção de fotografias eróticas nos banhei-
ros e a leitura de revistas pornográficas
nos refeitórios) e a imprevidência (a
alta proporção de trabalhadores que
têm deduções por dívida na folha de
pagamento).^2
Esses executivos “que falam mais
que a boca”, como diz um trabalhador,
têm todo o interesse em alimentar es-
sa visão uniformemente negativa dos
operários como grupo social, evitando
o transtorno que poderia resultar de
um entendimento mais realista. Qual-
quer desejo de entender iria minar sua
crença na legitimidade de sua partici-
pação ativa nas reestruturações in-
dustriais. O desprezo e o mal-entendi-
do condicionam, assim, a cegueira
socialmente necessária à sua missão.
E é essa filosofia do desprezo que os
“coletes amarelos” recusam.
FALTA DE TRAQUEJO POLÍTICO
A cristalização de um ressentimen-
to como o atual contra Macron resulta
em parte da fraqueza de seu capital
político. Ele foi eleito graças a uma
combinação de circunstâncias: dois
presidenciáveis, François Hollande e
François Fillon, sem condições de ven-
cer; uma Frente Nacional no segundo
turno que obrigou muita gente a votar
em Macron por falta de opção; uma
abstenção maciça (10,5 milhões de
pessoas no primeiro turno das elei-
ções presidenciais; 24,5 milhões no
primeiro turno das eleições legislati-
vas)... É um político sem traquejo polí-
tico que chegou ao poder.
Ter traquejo político é, pelo menos,
tentar “enquadrar” com uma retórica
mais ou menos eficaz as humilhações
sociais que se inflige, fingir simpatizar
com o sofrimento dos mais pobres,
com as dificuldades com que muitos
têm de lidar. É prometer colocar um
fim na “fratura social”, como fez Jac-
ques Chirac em seu tempo, ou abraçar
o ponto de vista daqueles que “só po-
dem contar consigo mesmos” – tão nu-
merosos nas classes populares que
muitas vezes essa infelicidade é enca-
rada como um “ponto de honra” –,
comprometendo-se a apoiar seus es-
forços, à maneira de Nicolas Sarkozy,
que isentou de imposto as horas extras
e não parava de elogiar aqueles que “se
levantam cedo”. “Sei que aconteceu de
eu magoar alguns de vocês com mi-
nhas afirmações”, admitiu Macron.
Essa falta de traquejo político tam-
bém caracteriza muitos deputados do
partido no poder, A República em Mar-
cha (LRM). Como destacou Christophe
Le Digol, dos 521 candidatos do LRM
nas eleições legislativas de 2017, 281
nunca haviam exercido um mandato.
Todo o recurso de que dispunham era
um capital social que pouco os predis-
punha a compreender os “coletes ama-
relos”: eles pertenciam às categorias
socioprofissionais mais elevadas, eram