MARÇO 2019 Le Monde Diplomatique Brasil 25
líderes empresariais, exerciam uma
atividade de consultoria...^3 As discus-
sões entre “coletes amarelos” testemu-
nham sua forte percepção desse necro-
tério social. Como a parlamentar Élise
Fajgeles, que não tem a menor ideia,
nem mesmo aproximada, do valor do
salário mínimo (CNews, 3 dez. 2018).
Ou a ativista pró-Macron que alegava
que “não se pode morar em um univer-
so extraordinário, com o gramado, as
montanhas, uma vista incrível, e ter
um hospital ao lado e uma farmácia no
térreo de casa”.^4 Você tem o campo,
não venha reclamar... Sem traquejo,
eles dizem o que pensam.
De “classes perigosas” a “multidões
furiosas”, de “maus pobres” a “escória”,
de “desclassificados” a “marginais”, a
conceituação de desprezo pelas classes
populares tem uma longa história. Mas,
se ela legitima aos olhos dos gestores, e
de muitos outros, suas múltiplas em-
preitadas de reeducação e de enquadra-
mento, não é sem efeitos perversos. Ela
os proíbe, em particular, de entender as
racionalidades que são a base do estilo
de vida popular. Foi, aliás, a insensibili-
dade em relação ao lugar ocupado pelo
carro no cotidiano de porções inteiras
das classes populares – insensibilidade
baseada em uma dupla incompetência,
política e social – que foi sancionada pe-
la explosão do movimento dos “coletes
amarelos”. Multiplicação de radares,
velocidade limitada a 80 km/h, aumen-
to no preço da gasolina, imposto cha-
mado de “ecológico” sobre os combus-
tíveis, controle técnico mais caro e mais
rigoroso, restrições ao diesel: ao reduzir
a liberdade de deslocamento, foi toda
uma economia material, de lazer e de
sociabilidade, especialmente nos cha-
mados mundos rurais, que o poder in-
conscientemente perturbou. Tomadas
por um presidente arrogante e interpre-
tadas por aqueles que foram afetados
como uma negação adicional de seu ser
social, essas medidas dirigidas ao auto-
móvel liberaram uma raiva até então
contida, ou não muito visível, que se
atualizou e cristalizou na rejeição, na
exigência de renúncia de Macron.
Qualquer grupo social ergue fron-
teiras simbólicas para valorizar as qua-
lidades de que considera ser depositá-
rio, para avaliar nessa medida os
comportamentos dos grupos dos quais
procura se diferenciar, acima ou abai-
xo, e interpretar a visão que estes últi-
mos têm dele. Desse ponto de vista, as
classes populares sofrem um tratamen-
to convergente de todos aqueles que as
tomam por “objeto”, na escola, no tra-
balho, em seus lugares de residência,
em seu lazer, na vida social mais co-
mum. Essa redução do outro popular
ao status de “objeto ruim” estrutura o
conjunto de nossa vida social.
Pierre Bourdieu sempre nos lem-
brou da necessidade de questionarmos
os efeitos simbólicos de nosso sistema
escolar. Em vez de dissertar sobre as
chamadas fraturas culturais que
opõem graduados e não graduados,
trabalhadores braçais e não braçais,
ou, em outras palavras, aqueles que se-
riam “fechados” e aqueles que seriam
“abertos”, aqueles que teriam um espí-
rito crítico e aqueles que seriam priva-
dos dele, as vítimas da globalização e
seus beneficiários, seria melhor levar
em conta o que provoca essa época de
“escolarização total”^5 em um sistema
escolar não apenas desigual, mas aci-
ma de tudo dedicado à manutenção da
ordem social.
Não importa o esforço que os pro-
fessores possam fazer, o mundo da es-
cola não poupa hoje em dia os filhos
das classes populares, forçados a se
submeter à ordem das legitimidades
culturais e enviados, na sua falta, à sua
“miséria” moral e cultural. Uma das
dimensões da generalização da edu-
cação secundária e superior, um pro-
cesso histórico de longo prazo que se
acelerou consideravelmente desde os
anos 1980, não é outra senão a apren-
dizagem por muitos de sua indignida-
de. Foi isso que ressaltou Pierre Ber-
gounioux, escritor de esquerda e
professor universitário: “Em vez dos
benefícios esperados, eles [os estudan-
tes] tiraram disso lucros bastante me-
díocres e o sentimento de indignidade
que é sua modalidade subjetiva. A ex-
periência é hereditária. Quem quer
que conclua o sexto ano, aos 11 anos de
idade, sem estar familiarizado com os
valores e as práticas da escola, é con-
denado a ser lembrado todos os dias,
várias vezes ao dia, de sua insuficiên-
cia, de sua mediocridade”.^6 Não se me-
de provavelmente a que ponto o “fra-
casso escolar” pode humilhar, em
especial porque, como eliminação
adiada ou mascaradas relegações es-
calonadas, ele agora acompanha o
conjunto do percurso.
Essa negação pode se infiltrar nas
situações mais cotidianas. Já nos anos
1960, o sociólogo Paul-Henry Chom-
bart de Lauwe entrevistou trabalhado-
res altamente qualificados que ha-
viam acabado de ser demitidos. Eles
sentiram que não tinham nenhuma
importância. Um deles observou que
sua madrasta, se por um lado estava
orgulhosa de um de seus genros, “de-
signer industrial”, por outro o apresen-
tava a seus conhecidos como “toneiro
[sic] alguma coisa”. Esse torneiro-fre-
sador estava convencido de que nos
Correios, quando as pessoas se diri-
giam a ele, elas “não o olhavam”...^7
Uma das dimensões das culturas po-
pulares reside nesse pensamento que
interpreta o tempo todo os mil signos,
detalhes ou anedotas, afirmações ou
atitudes corporais pelas quais, como
na situação colonial, a “individualida-
de” lhe é negada. No entanto, nossa vi-
da social multiplica situações em que
as classes populares estão em intera-
ção desigual com outros grupos so-
ciais: na agência de emprego do gover-
no, na administração pública, nas
relações com os professores de seus fi-
lhos, nas relações conflituosas com to-
dos aqueles que simbolizam para eles
o desgosto de suas práticas.
CLASSES POPULARES ENCURRALADAS
Essa percepção tem sido afirmada
e transformada há meio século, com a
generalização – inacabada, caótica e
segregacionista – do ensino médio e
superior, e com a crença cada vez mais
compartilhada no desaparecimento
das classes populares, quando na ver-
dade estas representam mais da meta-
de da população... O campo político,
em todos os seus componentes, tem
ele próprio se estruturado cada vez
mais sobre essa negação, a ponto de
que somente os membros das classes
altas e das classes médias intelectuais,
e seus interesses, mesmo contraditó-
rios, estão agora ali representados, en-
quanto as classes populares são rele-
gadas à inexistência. Essa orientação
foi até mesmo reivindicada em 2011,
em um relatório da Fundação Terra
Nova que propunha à esquerda socia-
lista fazer o funeral de seu “povo”.^8 O
Partido Comunista Francês (PCF), que
por muito tempo conseguira dignifi-
car as classes populares, sobretudo “a”
classe operária, não consegue mais
desempenhar esse papel. Entaladas
entre um pensamento conservador
fiel à sua tradição e uma esquerda con-
vertida à doutrina econômica da direi-
ta, as classes populares não sabem a
que santo recorrer.
A extrema direita fascista finge
abraçar esse ressentimento. O imi-
grante não é o único inimigo que ela
oferece a ele como alimento. Os pro-
fessores, os “jovens meio intelectuais,
meio de esquerda”, as “elites” (palavra
empregada com uma geometria variá-
vel), os ecologistas, os militantes sin-
dicalistas..., todos são igualmente ini-
migos que ela mira por meio de suas
diversas mobilizações. O ódio à esco-
la, aliás, atinge picos nas Memórias de
Jean-Marie Le Pen: “Depois de ter au-
mentado a idade e o nível das escolari-
dades obrigatórias, pretende-se ensi-
nar os deficientes profundos, os
1 “Eu os odeio, entendem? ” – trocadilho com a fa-
mosa frase do general De Gaulle, “je vous ai com-
pris” [“eu entendi vocês”].
2 Cédric Lomba, La Restructuration permanente de
la condition ouvrière. De Cockerill à ArcelorMittal
[A reestruturação permanente da condição de tra-
balho. De Cockerill a ArcelorMittal], Le Croquant,
Vulaines-sur-Seine, 2018.
3 Christophe Le Digol, Gauche-Droite: la fin d’un
clivage? Sociologie d’une révolution symbolique
[Esquerda-direita: o fim de uma divisão? Sociolo-
gia de uma revolução simbólica], Le Bord de l’Eau,
Lormont, 2018.
4 “Le moment Meurice”, France Inter, 3 dez. 2018.
5 Joanie Cayouette-Remblière, L’École qui classe.
530 élèves du primaire au bac [A escola que clas-
sifica. 530 alunos da escola primária ao ensino mé-
dio], Presses Universitaires de France, Paris, 2016.
6 Pierre Bergounioux, École: mission accomplie [Es-
cola: missão cumprida], Les Prairies Ordinaires,
Paris, 2006.
7 Paul-Henry Chombart de Lauwe, Maurice Combe,
Henri e Paule Ziegler (dir.), Nous, travailleurs licen-
ciés. Les effets traumatisants d’un licenciement
collectif [Nós, trabalhadores demitidos. Os efeitos
traumáticos de uma demissão coletiva], 10/18, Pa-
ris, 1976.
8 Olivier Ferrand, Romain Prudente e Bruno Jeanbart,
“Gauche: quelle majorité électorale pour 2012?”
[Esquerda: que maioria eleitoral para 2012?], Fun-
dação Terra Nova, Paris, 10 maio 2011.
9 Jean-Marie Le Pen, Mémoires. Fils de la nation
[Memórias. Filhos da nação], Muller Éditions,
Paris, 2018.
10 Cf. Yasmine Siblot, Marie Cartier, Isabelle Coutant,
Olivier Masclet e Nicolas Renahy, Sociologie des
classes populaires contemporaines [Sociologia
das classes populares contemporâneas], Armand
Colin, Paris, 2015.
11 Cf. Lorenzo Barrault-Stella e Bernard Pudal, “Re-
présenter les classes populaires?” [Representar
as classes populares?], Savoir/Agir, n.34, Vulai-
nes-sur-Seine, dez. 2015.
loucos, os imigrantes, os doentes, os
prisioneiros, os estrangeiros em nossa
casa, na casa deles, antes de sua pro-
fissão, durante sua vida, após sua apo-
sentadoria. Esse louco sonho de hege-
monia escolar é o fruto paradoxal da
‘revolução’ de maio de 1968, que dedi-
cou a função de ensinar à limpeza dos
banheiros. A prostituta não está can-
sada, como um moloch feminino que
se fortalece com armas viradas contra
elas. A Alma Mater fortalece a ditadu-
ra dos peões”.^9
Se por um lado é necessário se opor
ao assédio simbólico do qual são víti-
mas as classes populares tentando en-
tender as racionalidades que determi-
nam suas visões de mundo e suas
práticas, de outro não se trata de forma
alguma de inventar um “povo” ideal,
que simplesmente não existe. As clas-
ses populares, como tantos trabalhos
recentes^10 demonstraram, estão em
plena reconfiguração e não formam de
maneira alguma um bloco homogê-
neo. No entanto, hoje como ontem, é
do trabalho político de representação^11
que resultarão as relações de força no
seio das quais elas inscreverão seu fu-
turo, para pior ou para melhor.
*Bernard Pudal é professor de Ciência Políti-
ca da Universidade Paris Ouest Nanterre La
Défense. Autor, com Claude Pennetier, de Le
Souffle d’Octobre 1917. Pourquoi ont-ils cru
au communisme? [O sopro de outubro de
- Por que eles acreditaram no comunis-
mo?], Éditions de l’Atelier, Ivry-sur-Seine, 2017.
Não importa o esforço
que os professores
possam fazer,
o mundo da escola
não poupa hoje em dia
os filhos das classes
populares