BR_-_Le_Monde_Diplomatique_Brasil_MARCO_2019

(BrasilTuga) #1

MARÇO 2019 Le Monde Diplomatique Brasil 27


um intelectual curdo iraniano dotado
de uma sólida cultura filosófica”.
Desde 1978, todos os presidentes
franceses, sem exceção, receberam e
ouviram Bernard-Henri Lév y. Uma
vez que agora ele elogia Macron com a
regularidade de um metrônomo, este
último faria bem em lhe confiar uma
missão de averiguação das fake news.


ROBERT MENASSE
Escritor austríaco, vencedor do
Prêmio do Livro Alemão em 2017 pela
obra La capital [A capital] (Verdier,
2019), Robert Menasse luta por uma
Europa livre dos arcaísmos nacionais.
Mas o romancista também é um en-
saísta que há anos detalha suas con-
vicções em artigos publicados pela im-
prensa de referência em língua alemã.
Assim, em um texto inflamado escrito
em coautoria com um cientista políti-
co e intitulado “Viva a República euro-
peia”, publicado em 24 de março de
2013 no Frankfurter Allgemeine Zei-
tung
e, no mesmo dia, nas colunas do
Die Presse sob o título “Manifesto para
a fundação de uma república euro-
peia”, Menasse escreve: “O primeiro
presidente da Comissão Europeia,
Walter Hallstein, um alemão, decla-
rou: ‘A abolição da nação é a ideia eu-
ropeia’”. Antes de adicionar, numa
bravata: “Uma frase que nem o atual
presidente da Comissão nem o atual
chanceler alemão ousariam pronun-
ciar. Sem dúvida, eles nem ousam
pensar nisso. E, no entanto, essa frase
é a verdade, mesmo que ela tenha sido
esquecida”. Problema: Hallstein, que
morreu em 1982, nunca pronunciou
essa frase.
Em outubro de 2017, o grande his-
toriador Heinrich August Winkler ex-
pressou suas dúvidas no semanário
Der Spiegel e desafiou Menasse a citar
fontes. Em vão. Na esteira de outras
observações atribuídas por Menasse a
Hallstein, destaca-se: “O objetivo é e
continua sendo organizar uma Europa


pós-nacional”, ou ainda: “O objetivo
do processo de unificação europeu é a
superação dos Estados-nação”. Haja!
“Não só não existe prova alguma de
que essas frases foram pronunciadas,
como elas contradizem diametral-
mente o que Hallstein de fato afir-
mou .”^5 Definitivamente inventivo, o
ensaísta-romancista também disse
que Hallstein, em 1958, pronunciou
seu primeiro discurso como presiden-
te da Comunidade Econômica Euro-
peia em Auschwitz. “É um fato”, mar-
telava Menasse, ansioso para
demonstrar quanto “a Comissão Euro-
peia é a resposta para Auschwitz”. Era
falso.^6
Para Winkler, essas adulterações
são “produto de uma visão pós-factual
d a h i s t ó r i a”.^7 Fake news ainda mais
graves porque, apesar das advertên-
cias do historiador, elas são regular-
mente retomadas por figuras políticas
e intelectuais, como o fez, em novem-
bro passado, Manfred Weber, presi-
dente do grupo conservador no Parla-
mento Europeu e candidato à
presidência da União Europeia.
No início deste ano, a notícia falsa
de que os signatários do tratado fran-
co-alemão de Aix-la-Chapelle de 22 de
janeiro último pretendiam entregar a
Alsácia-Lorena à Alemanha foi imedia-
tamente negada pela mídia francesa, e
seu autor, um deputado europeu do
partido Debout la France, ridiculariza-
do. Finalmente destacadas e levadas a
sério pela imprensa alemã mais de um
ano após serem lançadas, as fake news
de Menasse não abalaram nem os jor-
nalistas franceses, que não pouparam
elogios a elas, nem o próprio falsário.
“Do ponto de vista científico, as aspas
foram um erro”, admitiu este último
após ter invocado um filósofo relativis-
ta para justificar sua falsificação ( Die
Welt , 5 jan. 2019). Em 19 de janeiro, ele
recebeu a Medalha Carl-Zuckmayer,
uma distinção literária outorgada pelo
ministro-presidente da região da Re-

nânia-Palatinado, o qual saudou “a lu-
ta engajada em favor da ideia europeia”
por parte do falsificador.^8

FRANCE INTER
Em 7 de fevereiro, Nicolas Demo-
rand e Léa Salamé, cuja antipatia pelos
“coletes amarelos” é evidente, recebe-
ram na France Inter um professor do
Collège de France, Patrick Boucheron,
que também não gosta muito dos ma-
nifestantes. Os três também comun-
gam no ódio às notícias falsas. Duran-
te a entrevista, Boucheron defendeu a
“pequena insurrecional” dos intelec-
tuais favoráveis aos “coletes amarelos”
e citou um desses negociadores, espe-
cialista em movimentos populares:
“Achei interessante ouvir Gérard Noi-
riel dizer: ‘É uma jacquerie ’ [revolta
camponesa do século XIV], enquanto
outros historiadores medievalistas di-
ziam: ‘Não, não é a jacquerie ’”. No en-
tanto, algumas semanas antes, Noiriel
havia sido questionado se a “compara-
ção do movimento dos ‘coletes amare-
los’ com as jacqueries ou pujadismo
[movimento corporativista com ten-
dências reacionárias da classe média]
era justificada. E ele respondeu: “Ne-
nhuma dessas referências históricas
realmente tem sentido. Falar, por
exemplo, de jacquerie em relação aos
‘coletes amarelos’ é tanto um anacro-
nismo quanto um insulto. [...] A gran-
de jacquerie de 1358 foi uma explosão
desesperada de mendigos prestes a
morrer de fome, num contexto marca-
do pela Guerra dos Cem Anos e pela
p e s t e n e g r a”.^9
Em seguida foi a vez da revista de
imprensa da France Inter. Claude As-
kolovitch dedicou uma grande parte à
denúncia das fake news de Donald
Trump e da mídia russa, e então emen-
dou: “E, no Le Monde Diplomatique , o
teórico do movimento Nuit Debout,
Frédéric Lordon, acha que [o canal
russo] RT, mesmo fazendo uma propa-
ganda putiniana um pouco excessiva,

1 Ler Serge Halimi, “Tous nazis” [Todos nazistas], Le
Monde Diplomatique, dez. 2007.
2 Ler nosso volumoso dossiê on-line “L’imposture Ber-
nard-Henri Lévy” [A impostura Bernard-Henry Lévy].
Disponível em: <www.monde-diplomatique.fr>.
3 Ardavan Amir-Aslani, “N’en déplaise à BHL, la
Perse n’est pas devenue l’Iran pour faire plaisir à
Hitler!” [“Sem ofensa a BHL, a Pérsia não se tor-
nou o Irã para agradar a Hitler!”], L’Opinion, Paris,
23 maio 2018.
4 Oliver McKee Jr., “Change of Santo Domingo to
Trujillo City recalls others” [Mudança de Santo Do-
mingo para a cidade de Trujillo lembra outras], The
New York Times, 26 jan. 1936.
5 Heinrich August Winkler, Zerbricht der Westen?
Über die gegenwärtige Krise em Europa und Ame-
rika [O oeste está quebrado? Sobre a atual crise na
Europa e na América], CH Beck, Munique, 2017.
6 Patrick Bahners, “Menasses Bluff” [O blefe de Me-
nasses] e “Fall Menasse. Psicopathologue” [A
queda de Menasse. Psicopatológico], Frankfurter
Allgemeine Zeitung, 2 e 6 jan. 2019.
7 Der Spiegel, Hamburgo, 21 out. 2017
8 Der Spiegel Online, 7 jan. 2019.
9 Le Monde, 28 nov. 2018.
10 Depois de ser denunciada nas redes sociais, essa
falsificação desapareceu da retranscrição da crô-
nica no site da France Inter.

é ‘a única mídia audiovisual respeitá-
vel’”. Existem apenas dois problemi-
nhas na citação da France Inter. Pri-
meiro, não é um artigo do Le Monde
Diplomatique , mas do blog de Frédéric
Lordon no site do Le Monde Diplomati-
que. Segundo, seu texto foi falsificado.
Lordon na verdade escreveu isto: “A
vergonha do jornalismo francês é me-
dida por esse paradoxo totalmente
inesperado de a RT ter se tornado qua-
se a única mídia audiovisual respeitá-
vel!”. Graças à principal rádio pública
francesa, o “paradoxo totalmente
inesperado”, o “quase” e o ponto de ex-
clamação (destinados a enfatizar o pa-
radoxo inesperado) desapareceram.^10
Uma semana depois, Demorand só
precisa lembrar as virtudes de sua pro-
fissão para os ouvintes de seu progra-
ma matinal: “Estamos lidando com
jornalistas, pessoas cujo negócio prin-
cipal é produzir fatos verificados e hoje
fazer a checagem dos fatos para lutar
contra o fluxo de notícias falsas”.

*Serge Halimi é diretor e Pierre Rimbert é
da direção do Le Monde Diplomatique.
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