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8 Le Monde Diplomatique Brasil^ M A RÇO 2019


A educação nas Forças Armadas

Na maioria das escolas, a educação militar segue divorciada do restante da educação do país, o que afasta


as Forças das demais instituições públicas e contribui para a instabilidade das relações entre civis, militares e Estado


POR ANA PENIDO*


© André Valias

DIVÓRCIO IDEOLÓGICO ENTRE O MUNDO CIVIL E O MILITAR


A


s propagandas eleitorais dos
dois principais candidatos à
Presidência em 2010, Dilma
Rousseff (PT) e José Serra (PS-
DB), exibiam algo em comum. Em seus
currículos, uma história pessoal de
combate ao regime militar. Dilma, tor-
turada, e Serra, presidente da UNE
quando do golpe. Naquele mesmo ano,
o último do governo Lula, a turma de
cadetes formandos na Academia Mili-
tar das Agulhas Negras (AMAN), escola
responsável pela formação dos oficiais
do Exército brasileiro, homenageou o
general Emílio Médici, presidente do
período 1969-1974, considerado o de
maior violência de todo o regime autori-
tário. Essa escolha evidencia um dis-
tanciamento ideológico entre o mundo
civil e o militar, construído essencial-
mente no ambiente educacional. Tal di-
vórcio quiçá seja a característica mais
forte da educação militar.
A Constituição de 1988 estabelece
que a educação é um direito de todos
os cidadãos, sendo dever do Estado e
da família promovê-la, devendo ser in-
centivada a colaboração da sociedade.
No artigo 83 da Lei de Diretrizes e Ba-
ses da Educação Nacional (LDB, Lei n.
9.394/1996), por sua vez, consta que “o
ensino militar é regulado por lei espe-
cífica, admitida a equivalência de es-
tudos, de acordo com as normas fixa-
das pelos sistemas de ensino”. Isso deu
autonomia às Forças Armadas para a
elaboração de sua política educacio-
nal, proporcionando garantia legisla-
tiva para que a educação militar man-
tivesse formulações distintas e até
mesmo antagônicas do restante do sis-
tema educacional brasileiro. Esse do-
mínio reservado é autorregulado, uma
área central dos militares para a for-
mação de si próprios.
O correto é dizer que cada uma das
Forças tem um sistema educacional
próprio, formulado de maneira autô-
noma. Ou seja, temos no Brasil o siste-
ma de ensino da Marinha, do Exército,
da Aeronáutica, e o sistema de ensino
civil, o que traz obviamente proble-
mas para qualquer atuação interagên-
cias. Existem iniciativas de intercâm-
bio, mas o principal momento em que
os cadetes se encontram são os jogos
esportivos militares e outros eventos


em que se mantém a mesma separa-
ção entre as três Forças e é estimulado
o espírito de competição entre elas.
Tal autonomia foi justificada com o
argumento de que o preparo militar
não depende do regime político, mas
do problema de defesa que porventura
exista. Em outras palavras, o que de-
termina como devem ser formadas as
Forças Armadas é o tipo de ameaças
que pairam sobre a sociedade. Essa é
uma visão equivocada! Uma política
educacional reveste-se, como seu pró-
prio nome expressa, de caráter políti-
co, social e econômico. Assim sendo, a
definição de temas, currículos e orien-
tações carrega em si visões de mundo.
É inegável o cuidado que as Forças
Armadas têm com seu sistema educa-
cional. Muito mais que o ensino, as es-
colas possibilitam a manutenção de
redes corporativas e de valores profis-
sionais. Há um componente formal e
oficial, composto de planos de estu-
dos, currículos, horários e perfis, cujo
processo de aprendizagem acontece
essencialmente na sala de aula. Esse é
um processo de ensino, algo mais res-
trito que a educação. Por outro lado,
também existe um componente infor-
mal, mas igualmente efetivo, caracte-
rizado, entre outras coisas, pela expo-
sição permanente a situações com
forte carga simbólica, da relação com
colegas da mesma patente, submissão
às ordens de superiores, entre outros. A
aprendizagem do “ser militar” é con-
comitante à diferenciação e separação
do mundo civil. Nesse processo, o ca-
dete adquire ferramentas técnicas pa-

ra a administração da violência e os va-
lores para viver toda uma vida militar.
Há dúvidas sobre o estudo pro-
priamente do Brasil na educação mili-
tar. O amor à pátria é extremamente
trabalhado, as tradições são exalta-
das, elementos simbólicos como o hi-
no e a bandeira são cultivados. Porém,
essa valorização subjetiva do Brasil
não é acompanhada na mesma pro-
porção por um estudo objetivo da rea-
lidade do país, que aborde a formação
do Estado brasileiro, as raízes cultu-
rais e raciais do povo, a estrutura eco-
nômica e a própria participação dos
militares na construção dessa histó-
ria. Essa defasagem contém três ris-
cos. O primeiro é a ideia de uma pátria
ideal, distante da que existe de fato. O
segundo é considerar o país insufi-
ciente e incompleto diante de outras
potências mundiais, pois sua realida-
de é vista de forma descontextualiza-
da de seus interesses e de sua história.
O terceiro é a não identificação da cor-
poração com o povo do território que
ela defende, o que dificulta a constru-
ção de uma cultura de defesa efetiva-
mente nacional e abre espaço para to-
do tipo de conduta autoritária.
Existem alguns exemplos de espa-
ços de aprendizagem divididos por ci-
vis e militares, como o Instituto Tec-
nológico da Aeronáutica (ITA) e o
Instituto Militar de Engenharia (IME),
mas são absolutas exceções. Essa se-
paração também se torna menor com
o decorrer da carreira, quando alguns
ambientes de exercícios ou estudos de
pós-graduação são compartilhados.

Entretanto, essa interação na pós-gra-
duação é de mão única – apenas os mi-
litares podem fazer escolas civis e ter a
equivalência de ensino. Na maioria
das escolas, contudo, a educação mili-
tar segue divorciada do restante da
educação do país, o que afasta as For-
ças das demais instituições públicas e
contribui para a instabilidade das rela-
ções entre civis, militares e Estado.
Por fim, a educação militar é forte-
mente impactada pela diversidade de
funções que o oficial é chamado a
cumprir atualmente. As dificuldades
técnicas no manejo das diferentes fun-
ções são um problema menor do que,
por exemplo, a exigência de discernir e
classificar cada ambiente profissional
para posteriormente acionar o conjun-
to de conhecimentos a ser aplicado em
cada situação. O exercício de classifica-
ção demanda uma necessária forma-
ção crítica, em que o soldado precisa
entender a especificidade de sua tarefa
enquanto tem conhecimento da totali-
dade da missão. Em outras palavras, é
uma tarefa bastante difícil “deixar de
lado” os conhecimentos adquiridos
para a guerra quando se é empregado,
por exemplo, em uma missão de Ga-
rantia da Lei e da Ordem (GLO), expe-
diente facultado pelo artigo 142.
Resta constatar que uma profissio-
nalização para o futuro precisa ser
pensada com base em um novo para-
digma das relações entre civis e mili-
tares, em que se discuta a concepção
de controle público sobre assuntos de
defesa. Nesse caso, a educação militar
não funcionará de forma apartada do
restante. Na realidade, mais do que
educação militar, será possível falar
em educação para a defesa, destinada
a civis e militares, especialistas ou
não. Talvez nesse novo paradigma seja
possível construir uma cultura estra-
tégica de defesa efetivamente brasilei-
ra, na qual o primeiro aprendizado é a
importância da ação coletiva e coope-
rativa entre os cidadãos do próprio Es-
tado, civis e militares, e o trabalho
conjunto com outros países da Améri-
ca do Sul nos assuntos de defesa.

*Ana Penido é doutora em Relações Inter-
nacionais (Unesp) e mestre em Estudos Es-
tratégicos (UFF).
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