Le Monde Diplomatique - Edição 140 (2019-03)

(Antfer) #1

10 Le Monde Diplomatique Brasil^ M A RÇO 2019


Baseados na
patologização do
pensamento
contestatário, esses
dispositivos pretendem
“erradicar os vírus
ideológicos”

China deseja limitar sua dependência
das importações, as empresas do país
extraem dali um sexto da produção
nacional de petróleo e quase um quar-
to da de gás natural. Oleodutos e gaso-
dutos ligados às regiões centrais e cos-
teiras foram rapidamente instalados, a
partir dos anos 1990-2000, para trans-
portar as torrentes de hidrocarbone-
tos que alimentaram o crescimento
chinês. Agora as autoridades apostam
em infraestruturas de carvão liquefei-
to e na geração de energia eólica, solar
e hidrelétrica.
Após a implosão da União Soviética
e depois com o lançamento do projeto
das novas “rotas da seda” (Belt and
Road Initiative, BRI), de iniciativa do
presidente Xi Jinping, a abertura do es-
paço da Ásia Central fez do Xinjiang um
trunfo na estratégia de projeção do po-
der chinês na Ásia. Fazendo fronteira
com o Paquistão, o Afeganistão e países
da ex-União Soviética, ele abriga um nó
de eixos de transporte ferroviários, ro-
doviários e energéticos com os quais a
China conta para garantir seu abasteci-
mento e expandir sua economia em di-
reção à Europa. A estabilidade desses
espaços vizinhos parece vital para o re-
gime, que os considera terrenos muito
propícios, se não estiverem sob um cui-
dado rigoroso, para o desenvolvimento
do islamismo, ou de uma pesada in-
fluência norte-americana.
Embora o Estado chinês tenha gra-
dualmente consolidado sua soberania
na região, a lembrança de insurreições
que culminaram em breves episódios
de independência,^5 a recorrência de
rebeliões e, mais recentemente, a pro-
liferação de ações violentas, até atos
terroristas, causam preocupação. Esse
território centro-asiático de domínio
turcófono, outrora chamado pelos
geógrafos ocidentais de Turquistão
Oriental, ou Turquistão Chinês, é mar-
cado por fortes particularismos e por
uma instabilidade que sempre preo-
cupou os imperadores chineses.
Quando os Qing quiseram fazer dele
sua “nova fronteira” (significado de
xinjiang em mandarim), os círculos
nostálgicos da teocracia sufi, que, até
então, exerciam autoridade ali, fize-
ram da defesa do islã uma ferramenta
de mobilização contra um poder sino-
-manchu não muçulmano. No início
do século X X, passam a se distinguir
as áreas de predomínio nômade caza-
que e quirguiz, no norte e nas monta-
nhas do Pamir, e oásis povoados de se-
dentários uigures, no sul e no leste.
Após o colapso do império, em
1912, os sucessivos senhores da guerra
chineses enfrentaram o crescimento
de uma oposição autonomista ou se-
paratista inédita. Ela contava com
uma nova geração de militantes, re-
presentada, à direita, por um movi-
mento panturco e, à esquerda, por
uma cena comunista apoiada e manti-


da pela União Soviética até o final da
década de 1940. A vitória de Mao Tsé-
-tung e dos comunistas, em 1949, e em
seguida as políticas repressivas que
precederam e acompanharam a Revo-
lução Cultural (1966-1976) desativa-
ram essas redes.

A VIRADA DE 1989
Nos anos 1980, porém, com a chega-
da ao poder do setor reformista do Par-
tido Comunista Chinês (PCC), o partido
e a administração estatal foram buscar
representantes das minorias para ten-
tar envolvê-las no aparato de Estado.
Surgiram espaços de liberdade cultural
e religiosa, e uma esfera militante na-
cionalista “anticolonial”^6 se regenerou
nas universidades e nos círculos inte-
lectuais uigures. Após os anos de pros-
crição da Revolução Cultural, parte da
sociedade voltou-se novamente para o
islã e, no sul, reconstituiu uma rede de
madraças na qual foram criados círcu-
los de talips (estudiosos da religião). Al-
guns defendiam a islamização das nor-
mas sociais e até a instauração de um
Estado islâmico independente. Foi o ca-
so da tentativa de insurreição em Barin,
em 1990,^7 de uma rede estruturada al-
guns meses antes, o Partido Islâmico do
Turquistão Oriental.

Em 1985, 1988 e 1989, em Urumqi e
outros oásis, manifestações denun-
ciaram a colonização demográfica, a
discriminação e a desigualdade étni-
ca, e a falta de autonomia política. Li-
deradas por associações estudantis,
às vezes ao lado de círculos religiosos,
elas degeneraram na depredação de
prédios públicos, especialmente no
início de 1989. Nesse ano, enquanto o
Tibete era sacudido por violentos tu-
multos em março e Pequim era abala-
da pelos eventos na Praça da Paz Ce-
lestial em junho, o partido temia que a
situação saísse do controle no Xin-
jiang, ainda mais quando a implosão
da União Soviética abriu caminho pa-
ra a independência de povos turcófo-
nos primos dos uigures.
O retorno da ala conservadora do
PCC fez desaparecer, entre os círculos
autonomistas ou separatistas, qual-
quer esperança de negociação sobre as
políticas colocadas em prática na re-
gião. O partido, a Associação Islâmica
do Xinjiang (uma organização de in-

termediação representante dos mu-
çulmanos), a administração regional,
as estruturas de ensino religioso, a es-
cola, a universidade, tudo foi pouco a
pouco sendo posto sob controle. Os
quadros não muito dóceis, excessiva-
mente religiosos ou considerados mui-
to complacentes com o autonomismo
ou com o separatismo foram afastados
ou até punidos.
Entrou em ação uma política de
progressivo enrijecimento do controle
sobre a sociedade. Para evitar a prisão,
os militantes nacionalistas mais en-
gajados se uniram às diásporas uigu-
res da Ásia Central, da Turquia e do
Ocidente, outrora pró-comunistas ou
panturcas, com o objetivo de fomen-
tar, dentro das organizações locais,
uma luta pelos direitos humanos no
modelo tibetano. Essa estratégia não
violenta ganhou definitivamente os
nacionalistas em 2004, quando suas
organizações se uniram e fundaram o
Congresso Mundial Uigur, sediado
em Washington.
No Xinjiang, à medida que a repres-
são se espalhava, as tensões aumenta-
vam. Multidões uigures enfurecidas
tomaram as ruas, como em Khotan,
em 1995, e Yining, em 1997. Com o des-
mantelamento das madraças do sul,
parte dos círculos islâmicos naciona-
listas consideravam que o partido esta-
va em guerra contra o islã e contra a
identidade islâmica dos uigures. Talips
e algumas células nacionalistas mer-
gulharam na clandestinidade. Eles for-
maram grupelhos defensores da ação
violenta, até mesmo do terrorismo. En-
tre 1990 e 2001, de acordo com as auto-
ridades chinesas, foram perpetrados
“duzentos incidentes terroristas, com
16 2 m o r t o s”.^8 Mas pouco a pouco esses
grupos foram desmantelados.
Em março de 1996, o PCC estabele-
ceu uma lista de orientações rigorosas
para erradicar as atividades poten-
cialmente subversivas.^9 Foram reali-
zadas várias campanhas “Mão Pesa-
da” (1997, 1999, 2001), levando ao
desenvolvimento de sessões de edu-
cação patriótica, a uma proliferação
de leis definindo o espectro das práti-
cas subversivas e a grandes ondas de
prisões. O mesmo documento desta-
cava a necessidade de incentivar a en-
trada de pessoas da etnia Han no Cor-
po de Produção e Construção. A
questão era limitar severamente a
construção de mesquitas, impor líde-
res que tivessem “amor à pátria” na di-
reção dos locais de culto e organiza-
ções religiosas, registrar todos os
indivíduos que tivessem alguma for-
mação em escolas religiosas sem auto-
rização e tomar “severas medidas” pa-
ra evitar que a religião viesse a intervir
nos assuntos sociais e políticos.^10 A
Anistia Internacional estima que fo-
ram feitas pelo menos 190 execuções
entre janeiro de 1997 e abril de 1999.^11

MAIS DE TREZENTAS VÍTIMAS DE TERRORISMO
Nessa época, um punhado de mili-
tantes islâmicos nacionalistas que ha-
viam se reunido em áreas paquistane-
sas e afegãs estabeleceram conexões
com as redes talibãs do comandante
Jalaluddin Haqqani. Esse grupelho,
chamado pela China de Movimento Is-
lâmico do Turquistão Oriental, penou
para atrair a atenção das ricas redes da
Al-Qaeda recentemente instaladas no
local. Com recursos limitados, ele ti-
nha dificuldades para se projetar em
um Xinjiang onde as redes adormeci-
das haviam sido amplamente esmaga-
das. Aproveitando o contexto pós-11 de
Setembro e a captura de elementos do
Movimento Islâmico do Turquistão
Oriental por forças norte-americanas
durante sua intervenção no Afeganis-
tão, as autoridades chinesas elabora-
ram a retórica das “três forças” ( sangu
shili ): terrorismo, separatismo (étnico)
e extremismo religioso. Assim, conse-
guiram colocar no mesmo saco círcu-
los democráticos nacionalistas ou au-
tonomistas não violentos, interessados
em promover os valores do islã no
campo social e político; jihadistas do
Movimento Islâmico do Turquistão
Oriental; e, mais amplamente, todos os
espíritos contestatários.
Nessa década, as redes do Movi-
mento Islâmico do Turquistão Orien-
tal, ou o que restava delas, recuadas no
Vaziristão, assumiram o nome de Par-
tido Islâmico do Turquistão (PIT),
após sua integração na internacional
jihadista da Al-Qaeda. Eles usaram as
redes sociais para incitar a violência.
Embora a amplitude do monitora-
mento da internet realizado pela Chi-
na dificulte o acesso a suas publica-
ções, após um longo período de calma
o sul do Xinjiang e sua capital, Urum-
qi, passaram por uma série de atenta-
dos. Esta começou em 2008, com a
aproximação dos Jogos Olímpicos, e
ganhou impulso em 2009, quando vio-
lentas rebeliões opuseram uigures e
hans em Urumqi,^12 fazendo oficial-
mente 197 mortos – pelo menos três
quartos deles hans. A região ficou sob
forte pressão. A internet foi cortada
durante vários meses, mas os ataques
se multiplicaram.
Alguns desses atos parecem ter si-
do premeditados por células ligadas
ao PIT, como os ataques em Kashgar,
em 2011, mas muitos deles, como
agressões com arma branca contra
policiais ou civis, parecem mal prepa-
rados e cometidos por uma juventude
que simplesmente assistiu aos vídeos
do PIT ou de outros movimentos jiha-
distas. Muitas ações violentas choca-
ram a opinião pública chinesa, às ve-
zes ultrapassando as fronteiras do
Xinjiang: o atentado com um automó-
vel na Praça da Paz Celestial em outu-
bro de 2013 (cinco mortos, dois turis-
tas e três atacantes), o da faca na
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