Le Monde Diplomatique - Edição 140 (2019-03)

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18 Le Monde Diplomatique Brasil^ M A RÇO 2019


SEGURANÇA PÚBLICA


O pacote de Moro nasce velho

Moro sugeriu que juízes possam extinguir penas de policiais que alegarem que mataram por estarem submetidos


a “violenta emoção, escusável medo ou surpresa”. Pergunto: se o cabo que matou Hélio justificasse que atirou porque


se sentiu surpreendido, seria justo que ele não fosse responsabilizado?


POR MARCELO FREIXO*


J


á havia anoitecido quando Jho-
nata Alves, de 16 anos, saiu da
casa do tio, no Morro do Borel,
na Tijuca, para voltar para a Usi-
na, na zona norte carioca, onde vivia
com a mãe e os quatro irmãos. Ele fora
buscar saquinhos de pipoca para a fes-
ta junina da creche do caçula, que
aconteceria no dia seguinte. Mas Jho-
nata nem sequer conseguiu sair da fa-
vela. Quando descia o morro, foi assas-
sinado com um tiro de pistola na
cabeça disparado por um PM da UPP
do Borel. O policial teria confundido os
pacotes de pipoca com drogas. O crime
ocorreu no dia 30 de junho de 2016.
História semelhante se repetiu dois
anos depois, em 17 de setembro de
2018, no Morro do Chapéu Mangueira,
favela da zona sul do Rio. O garçom
Rodrigo Serrano foi assassinado a tiros
por um PM que confundiu o guarda-
-chuva que ele carregava com um fu-
zil. A execução de Rodrigo lembra a
morte do supervisor de supermercado
Hélio Ribeiro, de 47 anos, assassinado
no Andaraí no dia 19 de maio de 2010
por um cabo do Batalhão de Opera-
ções Especiais (Bope) enquanto insta-
lava um toldo na laje de sua casa. O po-
licial achou que a furadeira que Hélio
segurava era uma metralhadora.
O pacote apresentado pelo minis-
tro da Justiça, Sérgio Moro, com medi-
das para supostamente enfrentar a
violência me fez recordar as histórias
de Hélio, Jhonata e Rodrigo. Isso por-
que, ao abordar a legítima defesa, Mo-
ro sugeriu que juízes possam extinguir
penas de policiais que alegarem que
mataram por estarem submetidos a
“violenta emoção, escusável medo ou
s u r p r e s a”.
Pergunto: se o cabo que matou Hé-
lio justificasse que atirou porque se
sentiu surpreendido, seria justo que
ele não fosse responsabilizado? Você
concordaria que o PM que disparou à
queima-roupa contra Jhonata tivesse
sua pena extinta caso dissesse que
agiu sob “violenta emoção”? Ou que o
policial que confundiu o guarda-chu-
va de Rodrigo com um fuzil não fosse
punido porque alegou que naquele
momento estava submetido a “escusá-
vel medo”?
Medidas como essa não diminuirão
a violência. Pelo contrário. Permitir que


agentes de segurança pública não se-
jam responsabilizados por homicídios
cometidos sob argumentos tão subjeti-
vos certamente nos levará a uma situa-
ção nefasta: mais acobertamento de
execuções, impunidade e aumento da
violência policial. Foi o que aconteceu
no Rio de Janeiro, no governo Marcello
Alencar (1995-1999), com a chamada
gratificação faroeste: policiais eram
premiados por bravura, o que levou
agentes a matar e a morrer mais, sem
que isso reduzisse a criminalidade.
Moro tem dito que o pacote estabe-
lece segurança jurídica ao definir as
circunstâncias em que o policial pode
agir. Não é verdade, pois se trata, no
fim das contas, de segurança jurídica
para a prática de execuções. Até por-
que não existe vácuo legal em relação à
legítima defesa. A legislação atual pre-
vê que não há crime quando o policial
usa a força de maneira proporcional,
inclusive de forma letal, para proteger
a própria vida ou a de outra pessoa.
Ao contrário do que dá a entender a
proposta de Moro, não há perseguição
a policiais que matam em serviço, e
sim leniência do Ministério Público e
do Poder Judiciário. Fui relator da CPI
dos Autos de Resistência na Assem-
bleia Legislativa do Rio de Janeiro
(Alerj), encerrada em 2016. Ali, indica-

mos a responsabilidade do Judiciário,
que entre 2005 e 2007 arquivou 99,2%
dos processos sobre homicídios ocor-
ridos em operações, segundo pesquisa
do sociólogo Michel Misse.
Discursos populistas e modifica-
ções legais que incentivam maior vio-
lência policial não valorizam a polícia
nem seus profissionais. Eles fazem
apenas que trabalhadores da seguran-
ça se lancem numa guerra insana, ma-
tando mais e morrendo mais, porque
na guerra é matar ou morrer. E, no
nosso caso, não há nem haverá vence-
dores, muito menos avanços na dimi-
nuição da criminalidade.
Segundo o Anuário Brasileiro de
Segurança Pública, em 2017 a polícia
matou catorze pessoas por dia em todo
o país, totalizando 5.144 homicídios –
um aumento de 20% em relação a 2016.
No mesmo ano, 367 policiais foram as-
sassinados, um por dia, em média. A
polícia matou e morreu muito, e isso
não teve nenhum efeito sobre a redu-
ção da violência, como demonstram os
dados gerais de homicídios de 2017,
quando ocorreram 63.880 assassina-
tos, 3% a mais do que no ano anterior.
Existem duas questões, uma de
fundo ético e outra de fundo prático.
Do ponto de vista da ética, o Estado
não pode encobrir crimes de seus

agentes sob o argumento de combater
a criminalidade. É uma contradição
horrenda. O argumento prático pode
ser assim resumido: se a violência po-
licial resolvesse, o Brasil seria o país
mais pacífico do mundo.
Os problemas relativos à legítima
defesa não se restringem às ações poli-
ciais. A proposta prevê que os mesmos
argumentos valham para civis. Faça-
mos um exercício de fabulação. Imagi-
ne um jovem de família humilde, mo-
rador de uma cidadezinha do interior
do país. Nesse mesmo município vive
um próspero fazendeiro. E, sempre
que passa pelo farto pomar do latifun-
diário, nosso protagonista lança os
olhos compridos para as árvores car-
regadas de tangerinas. De vez em
quando, ele pula a cerca e pega algu-
mas frutas. Revoltado, o fazendeiro
um dia dispara e mata o rapaz. Caso a
proposta de Moro estivesse valendo, o
assassino poderia alegar que agiu sob
“violenta emoção” e não ser punido.
À exceção do desfecho trágico, o re-
lato é inspirado em fatos. Matéria da
BBC News Brasil de 16 de janeiro de
2019 contou a história do período em
que as famílias Bolsonaro e Paiva, do
deputado Rubens Paiva, desaparecido
durante a ditadura militar, conviveram
em Eldorado Paulista, em São Paulo. O
jovem que surrupiava tangerinas era
Bolsonaro. E o fazendeiro, o patriarca
Jaime Paiva, que chegou a escalar um
vigilante para desencorajar os meni-
nos. Se o jovem Bolsonaro tivesse sido
atacado pelo fazendeiro, que benefí-
cios isso traria à segurança? Nenhum.
Outro exemplo. Pensemos numa
mulher que é frequentemente agredi-
da pelo marido, mas nunca registrou o
crime – ninguém sabe o que ocorre em
sua casa. Se num dia ela resolver reagir
aos ataques e for morta pelo cônjuge, o
homicida poderá alegar que agiu sob
“violenta emoção” e não ser punido.
No que se refere à segurança públi-
ca, Moro comete o erro elementar de
apostar em iniciativas que fracassa-
ram ao longo dos últimos anos e nos
levaram ao descalabro que vivemos
hoje. Isso não ocorre somente em rela-
ção à medida que abre brechas para o
agravamento da violência policial. O
ministro propôs modificações legais
para, em suma, prender mais e soltar

© Daniel Kondo
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