Le Monde Diplomatique - Edição 140 (2019-03)

(Antfer) #1

MARÇO 2019 Le Monde Diplomatique Brasil 19


menos. A consequência dessa escolha
é óbvia: o sistema prisional, que já é
caótico, vai explodir. E não é preciso
ser especialista em segurança para
concluir que o fato provocará efeito
contrário ao esperado: a violência ten-
derá a aumentar por meio do fortale-
cimento de facções criminosas cujas
bases estão no sistema penitenciário.
O Comando Vermelho e o Primeiro
Comando da Capital (PCC) não surgi-
ram e se organizaram nas ruas, mas
dentro das cadeias e graças à barbárie
dentro delas. Medidas que agravem a
superlotação tornarão a situação ain-
da mais delicada.
O país precisa discutir de maneira
menos populista o sistema prisional.
Entulhar pessoas em masmorras e
submetê-las a maus-tratos em celas
superlotadas pode satisfazer nossos
sentimentos imediatos de vingança,
mas não nos ajuda a melhorar as con-
dições da segurança. Por uma razão
muito simples: as prisões não são um
mundo à parte da realidade; a violên-
cia dentro delas alimenta a violência
nas ruas. Não se reduz a criminalidade
simplesmente encarcerando em mas-
sa. Vejamos os dados: entre 1990 e
2016, a população penitenciária cres-
ceu 707%, chegando a 726 mil. A cri-
minalidade diminuiu? Meu argumen-
to não é só humanitário, ele também é
fruto de uma preocupação prática
com a eficácia do sistema. Os presídios
brasileiros são lugares caros para tor-
nar as pessoas piores.
Evidentemente, criminosos que re-
presentam riscos à vida das pessoas
precisam ter a liberdade restringida.
Mas esse não é o perfil majoritário da
população carcerária, até porque a ta-
xa de homicídios elucidados no Brasil
é baixíssima. Segundo o Levantamen-
to Nacional de Informações Peniten-
ciárias (Infopen) de junho de 2016, pu-
blicado pelo Ministério da Justiça,
crimes contra a vida, como homicídio
e latrocínio, correspondem a 14% dos
detentos. Além disso, em 2017 havia
247,8 mil pessoas presas sem julga-
mento definitivo, o que equivale a 37%
da população carcerária.
Além de apostar no que fracassou,
Moro se omite sobre a ausência de po-
líticas de ressocialização, como se não
fossem centrais para a segurança pú-
blica. De acordo com o mesmo In-
fopen, apenas 12% dos detentos brasi-
leiros estudam e somente 15%
trabalham. Ao passar ao largo desse
problema, o pacote mostra que a polí-
tica para o sistema prisional continua
sendo não ter política alguma.
O ministro também se equivoca ao
tratar as milícias de maneira superfi-
cial, assemelhando-as ao narcotráfico.
Não se enfrentam milicianos e trafi-
cantes com as mesmas estratégias.
Presidi a CPI das Milícias na Alerj em



  1. O trabalho foi um marco no en-


frentamento ao crime organizado: pe-
dimos o indiciamento de 226 pessoas;
possibilitamos a prisão dos chefes das
quadrilhas, entre eles deputados e ve-
readores; apresentamos à União, ao
estado e ao município do Rio, bem co-
mo aos três poderes, 58 propostas para
combatê-las de forma inteligente e efi-
caz, mas pouco se avançou.
Por que essa omissão? Talvez por-
que as milícias, que não são problema
exclusivo do Rio de Janeiro, interessem
a muita gente. Ao contrário do tráfico,
milícia é uma máfia bastante enfro-
nhada nas estruturas do Estado. Mili-
cianos conseguem transformar seu
domínio territorial em capital eleito-
ral. Em outras palavras, o projeto das
milícias é econômico e político. É o Es-
tado leiloado. As quadrilhas ajudam a
eleger vereadores, deputados, prefei-
tos, senadores. Por isso, chama a aten-
ção que Moro trate o assunto de forma
tão ligeira, mesmo diante de tanta in-
formação produzida.
Na realidade, o pacote não é sobre
segurança pública, mas sobre o pro-
cesso e a execução penal, que, apesar
de serem assuntos correlatos, estão
longe de dar conta da complexidade do
problema. Não há uma linha, por
exemplo, sobre o que fazer para me-
lhorar o setor de inteligência das polí-
cias, algo fundamental para reverter-
mos a baixíssima taxa de elucidação
de crimes contra a vida. O jornal O
Globo publicou em 18 de fevereiro que
apenas 0,5% da verba de segurança
nos estados e no Distrito Federal foi in-
vestida em inteligência. No governo fe-
deral, o volume foi de apenas 9%, em
média, nos últimos cinco anos. Moro
ignorou essa questão.
O ministro também passou longe
das urgentes melhorias nas condições
de trabalho dos agentes de segurança
e do aprimoramento das instituições
policiais: treinamento adequado; va-
lorização da carreira e dos salários pa-
ra que os trabalhadores não precisem
recorrer a bicos, algo que está na ori-
gem das milícias; promoção da saúde
no trabalho, principalmente no que se
refere à saúde mental por causa dos al-
tos níveis de estresse; revisão das jor-
nadas de trabalho extenuantes, essen-
cialmente dos praças, para que eles
tenham mais tempo para a família e o
lazer; integração das polícias esta-
duais e federal; definição dos papéis
de cada ente federativo no trato da se-
gurança pública – como viabilizar o
cumprimento das responsabilidades
dos municípios, do estados e da União,
como manda a Constituição? Esses
desafios receberam de Moro somente
o silêncio.
Esta análise não poderia deixar de
fora a relação das propostas do ministro
com o decreto presidencial que na prá-
tica liberou a posse de armas de fogo. A
combinação é explosiva. De um lado,

facilita-se que mais pessoas adquiram
armas. Do outro, abre-se brecha jurídi-
ca para que assassinatos sejam enqua-
drados como legítima defesa.
Permitir que mais pessoas se ar-
mem pode até reduzir a sensação indi-
vidual de insegurança, mas não dimi-
nuirá a violência. O decreto é tão
demagógico e ineficaz quanto o estí-
mulo à violência policial e ao encarce-
ramento em massa. Na prática, o pre-
sidente Jair Bolsonaro está declarando
a falência do Estado no trato do pro-
blema e repassando aos indivíduos,
que não têm nenhum preparo para tal,
a responsabilidade de enfrentar o cri-
me. Se policiais morrem aos montes ao
serem surpreendidos por bandidos,
que será dos cidadãos comuns?
Presidi a CPI do Tráfico de Armas e
Munições na Alerj em 2011. Constata-
mos à época que o problema maior
não está nas fronteiras, mas nas armas
fabricadas no Brasil e que foram des-
viadas para a ilegalidade dentro do
território fluminense – elas correspon-
deram a 82% das apreensões entre
2000 e 2010. Assim, ampliar a circula-
ção de armamentos significa também
fortalecer o mercado clandestino que
alimenta a violência, diminuindo in-
clusive o preço, já que aumenta a ofer-
ta. Moro também se omite sobre isso.
Sabemos que o poder público não
tem conseguido apresentar soluções
reais para o crescimento da criminali-
dade. Mas não podemos deixar que
nossa angústia, por mais compreensí-
vel que seja, nos leve a namorar medi-
das populistas num salvacionismo ilu-
sório de recrudescimento da ação
policial, endurecimento penal, facili-
tação do acesso a armas e extinção de
garantias constitucionais. Precisamos
de mais diálogo e políticas responsá-
veis. Afinal, existem propostas concre-
tas a serem discutidas, algumas delas
apresentadas aqui.
Infelizmente, Moro elaborou esse
pacote sem nenhum debate anterior e
permanece resistindo a conversar
com pessoas e entidades que acumu-
lam experiência sobre o tema e muito
poderiam contribuir. Sem a abertura
ao diálogo e a viabilização da partici-
pação da sociedade, não conseguire-
mos avançar, principalmente num
Congresso dominado pelo lobby da in-
dústria das armas. A bancada da bala
não tem nenhum compromisso com a
redução da violência – nela prevalece
somente a lógica econômica em detri-
mento da vida das pessoas, inclusive
dos policiais lançados à guerra e dos
cidadãos mais angustiados e propen-
sos a acreditar em ilusões armadas. Se
aprovadas como estão, as propostas
do ministro para a segurança pública
agravarão ainda mais nosso drama.

*Marcelo Freixo é professor de História e
deputado federal (Psol-RJ).

Na luta


pela


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