Le Monde Diplomatique - Edição 140 (2019-03)

(Antfer) #1

MARÇO 2019 Le Monde Diplomatique Brasil 23


PROTESTOS DOS BÁLCÃS À HUNGRIA


Revoltas na periferia da Europa

Desde 8 de dezembro, milhares de sérvios se manifestam todo fim de semana contra o regime de Aleksandar Vucic.


Na Albânia, estudantes fazem tremer o governo social-democrata de Edi Rama, enquanto a cólera aumenta na Hungria de


Viktor Orbán. Para além das diferenças nacionais, as populações da Europa Central se mobilizam contra as mesmas políticas


POR JEAN-ARNAULT DÉRENS E SIMON RICO*


A


Sérvia está oferecendo a si mes-
ma uma nova primavera no in-
verno. Como em 1996-1997,
quando dezenas de milhares
de cidadãos protestaram contra o re-
gime de Slobodan Miloševic, os cor-
tejos serpenteiam pelas ruas de Bel-
grado todos os sábados. Surgido em 8
de dezembro de 2018, o protesto con-
tra a política autoritária e antissocial
do presidente Aleksandar Vucic agora
se estende a todas as cidades do país.
Em Belgrado, a longa coluna faz uma
parada em frente à sede da Radiotele-
visão da Sérvia (RTS), símbolo do con-
trole do poder sobre os meios de co-
municação. Entre as reivindicações
que unem o movimento: conseguir
“cinco minutos de tempo no jornal da
RTS”... Os manifestantes também exi-
gem a verdade sobre o assassinato do
opositor sérvio do Kosovo, Oliver Iva-
novic, morto em 16 de janeiro de 2018,
ou ainda sobre a renúncia do ministro
do Interior.
“Faz trinta anos que os cidadãos da
Sérvia são forçados a tomar as ruas para
exigir liberdade e justiça. Este movi-
mento é nossa última chance, caso con-
trário este país desaparecerá”, lançou
no final de janeiro Branislav Trifunovic.
O ator arregimenta a multidão no início
de cada cortejo de Belgrado, acrescen-
tando um aviso severo aos líderes dos
partidos – divididos – da atual oposição
parlamentar, que, de resto, se mostram
discretos. “As pessoas rejeitam todos os
partidos que estiveram no poder, man-
chados por casos de corrupção”, reco-
nhece Borko Stefanovic, chefe da Es-
querda da Sérvia (Levica Srbije), que
sofreu um ataque com barras de ferro,
em 23 de novembro, o qual serviu como
estopim do movimento.
A rejeição vai ainda mais longe: os
vários partidos da oposição “democrá-
tica”, no poder nos anos 2000, levaram a
cabo políticas neoliberais semelhantes
àquelas seguidas por Vucic hoje. Oriun-
do da extrema direita racista e belicista,
e que há uma década se converteu em
defensor da integração europeia, o novo
senhor de Belgrado controla o país,
apoiando-se em um círculo restrito de
pessoas que lhe devem favores e são por
ele protegidas. Despojados de qualquer
referência ideológica e ansiosos por en-
riquecer rapidamente, seus tenentes co-
locaram o país sob um rígido controle,


lançando mão tanto da repressão quan-
to do clientelismo.
“Esse movimento está reduzindo o
medo. Na Sérvia, as pessoas receiam
perder o emprego se criticarem o regi-
me... Essa é a capa de chumbo que está
rachando”, avalia a jornalista Jovana
Gligorijevic, do semanário Vreme , um
dos últimos títulos da oposição. “Os
países da União Europeia, embora sai-
bam muito bem como Vucic governa a
Sérvia, pensam, no entanto, que ele é o
único capaz de garantir a estabilidade
do país e da região. Entendemos que
não podemos contar com o apoio de-
les.” Desse ponto de vista, a situação
não é muito diferente daquela que pre-
valecia em 1996: na época, logo após a
assinatura dos Acordos de Paz de Day-
ton, que em dezembro de 1995 haviam
colocado um fim à guerra na Bósnia e
Herzegovina, Slobodan Miloševic tam-
bém contava com o apoio dos ociden-
tais. Estes esperam que Vucic resolva a
questão do Kosovo, concluindo um
acordo “histórico” com seu homólogo
de Pristina, Hashim Thaçi. O chefe de
Estado sérvio excede na arte de au-
mentar as apostas com eles, mostran-
do sua proximidade com a Rússia de
Vladimir Putin, que ele recebeu com
grande pompa em meados de janeiro.
Vucic acelerou sobretudo a virada
neoliberal da economia sérvia, des-
mantelando a lei trabalhista desde
sua chegada aos negócios, em 2012,
como vice-presidente do governo.
“Queremos viver em um país nor-
mal. Hoje, todo mundo busca o exílio
porque é impossível encontrar um em-
prego ou iniciar um negócio sem ter a
carteirinha do Partido Progressista”, ex-
plica-nos um estudante de Belgrado,
com o colete amarelo do serviço de ma-
nutenção sobre os ombros. Como todos
os países balcânicos, a Sérvia é atingida
por uma nova onda de emigração que
toma ares de êxodo.^1 O governo da pri-
meira-ministra Ana Brnabic continua a
alardear um crescimento em alta e a
criação líquida de empregos. Mas esses
resultados só são obtidos com muita
ajuda pública a empresas estrangeiras,
que captam esses incentivos antes de
partir para outros lugares. O exemplo
mais recente: a empresa de cabos de
energia sul-coreana Yura, que transfe-
riu parte de sua produção para a Albâ-
nia depois de receber 7 mil euros em

ajuda direta para cada trabalho criado
em sua fábrica de Leskovac...^2 Nessas
oficinas de mão de obra, que estão au-
mentando nos Bálcãs, a legislação tra-
balhista é geralmente desconhecida, a
flexibilidade é sistêmica e a renda real
dos empregados dificilmente excede
200 a 300 euros por mês.
Em dezembro, a Albânia experi-
mentou os maiores protestos estudan-
tis desde a queda do comunismo. O
aumento da mensalidade escolar, que
desencadeou essas reações, é conse-
quência de uma lei – adotada no ano
anterior pelo governo social-democra-
ta de Edi Rama e saudada pela União
Europeia – que previa a colocação em
concorrência das universidades e sua
abertura ao mercado. Rama, que che-
gou ao poder em 2013, só conhece uma
receita para “modernizar” a Albânia: a
das parcerias público-privadas, fonte
de enriquecimento rápido para um
círculo de empresários próximos do
Partido Socialista (PS).
O descontentamento estudantil te-
ve como alvo explicitamente essa mu-
dança, rejeitando com o mesmo ímpe-
to os dois partidos que se sucedem no
poder desde a queda do regime comu-
nista stalinista em 1991: o PS e seu “ir-
mão inimigo” de direita, o Partido De-
mocrata (PD). Após um quarto de
século em que se denegriu tudo que
era público, enquanto o setor privado
era adornado com todas as virtudes,
muitos observadores viram no movi-
mento estudantil o surgimento de
uma geração “pós-transição”. Rama
teve de recuar, cedendo a várias rei-
vindicações estudantis e demitindo
metade de seu governo em 28 de de-
zembro de 2018. Enquanto a Albânia
não deixa de ver partir suas forças vi-
vas – os albaneses lideram os pedidos
de asilo na França –, os estudantes em
revolta exigem poder viver e trabalhar
em seu país.
Na Republika Srpska, a “entidade
sérvia” de uma Bósnia e Herzegovina
ainda dividida, milhares de pessoas
rotineiramente desafiam o regime de
Milorad Dodik a exigir justiça e verda-
de para David Dragicevic, jovem as-
sassinado em circunstâncias obscuras
na noite de 17 para 18 de março de


  1. No final de dezembro, as autori-
    dades proibiram todas as reuniões,
    prenderam dezenas de pessoas e en-


viaram unidades policiais especiais
para expulsar aqueles que ainda que-
riam colocar velas na neve. Há muito
apoiado pelos ocidentais, Dodik^3 não
hesita em denunciar qualquer crítica a
seu poder como uma tentativa de “de-
sestabilização” da entidade sérvia. A
estratégia é compartilhada pelos par-
tidos nacionalistas bósnios e croatas:
todos entram em acordo para fomen-
tar crises permanentes, fazendo reinar
um clima de medo cujo único propósi-
to é marginalizar qualquer protesto.
Os cidadãos de todos os países dos
Bálcãs estão cansados dessa retórica
nacionalista e bélica. Desde o movi-
mento dos plenums na Bósnia e Herze-
govina em 2014^4 até o início da não
concretizada “revolução das cores” na
Macedônia em 2016, a mesma aspira-
ção profunda é expressa em todos os
lugares: o fim da marginalização eco-
nômica e social na Europa e a possibi-
lidade de viver decentemente em seu
país. Porque o êxodo continua. Muitos
sonham em ir para a Europa Ociden-
tal, mas têm de parar na Hungria, na
Eslováquia ou na República Tcheca,
países que se transformaram nos últi-
mos anos em periferias manufaturei-
ras, com a proliferação de fábricas ter-
ceirizadas oferecendo aos empresários
ocidentais salários reduzidos e uma lei
trabalhista muito “flexível”... A revolta
contra essas políticas poderia muito
bem se espalhar por toda essa região,
cujos cidadãos não suportam mais ser
vistos como europeus de segunda
classe, destinados à exploração e con-
denados ao declínio.

*Jean-Arnault Dérens e Simon Rico são
jornalistas no Courrier des Balkans.

1 Ler Jean-Arnault Dérens e Laurent Geslin, “Cet
exode qui dépeuple les Balkans” [O êxodo que
despovoa os Bálcãs], Le Monde Diplomatique,
jun. 2018.
2 Cf. Nikola Radic, “Serbie: les Sud-Coréens de
Yura (re)délocalisent en Albanie [Sérvia: os sul-co-
reanos de Yura transferem suas empresas (de
novo) da Albânia], Le Courrier des Balkans, 26 set.
2018.
3 Presidente da Republika Srpska de 2010 a 2018,
Milorad Dodik foi eleito membro da presidência co-
legiada da Bósnia e Herzegovina em outubro de
2018, mas continua a ser o senhor indiscutível da
entidade sérvia, mesmo não mais exercendo um
mandato eletivo.
4 Ler Jean-Arnault Dérens, “La Bosnie enfin unie...
contre les privatisations” [A Bósnia finalmente uni-
da... contra as privatizações], Le Monde Diplomati-
que, mar. 2014.
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