Le Monde Diplomatique - Edição 140 (2019-03)

(Antfer) #1

MARÇO 2019 Le Monde Diplomatique Brasil 29


3. Infelizmente, do jeito que vão as coi-
sas, uma revisão como essa seria obje-
to de, no mínimo, uma recusa categó-
rica: a da Alemanha. É que justamente
ela condicionou sua participação no
euro à perenização de sua ortodoxia
nos tratados. Se fosse minoria nesse
assunto, ela preferiria a integridade de
seus princípios a pertencer à União.
O dilema sobre o qual a “esquerda
europeia democrática” vai ter de chegar
a um acordo é o seguinte: democratizar
(realmente) o euro supõe refazer os tra-
tados, mas refazê-los significará sem
sombra de dúvida a saída da Alema-
nha... e a quebra do euro. Obviamente,
quando a realidade é extremamente di-
fícil de ser enfrentada, há sempre a solu-
ção do refúgio no sonho – no caso, aca-
lentar “o euro democrático”.


INTERNACIONALISMO SEM NEOLIBERALISMO
No entanto, para os que aceitam
ver a contradição e escolhem as políti-
cas progressistas contra o fetichismo
do euro, o problema não é menos agu-
do. Assim, para Stefano Palombarini,^1
a perspectiva de saída do euro não po-
deria ser vista nos limites do bloco
eleitoral de esquerda atualmente
constituído, do qual algumas frações
clamam pelo “recuo nacional” diante
do enunciado dessa única ideia.
De certo ponto de vista, ele tem ra-
zão. O debate da esquerda sobre o eu-
ro, desde 2010, mostrou suficiente-
mente que divisões ele atravessava. E
é exatamente esse reflexo à flor da pele
que testemunha a persistente quime-
ra do “outro euro”, com a qual o desas-
tre grego não bastou para acabar – e
cujos erros obstinados em busca do
“Parlamento do euro” são a expressão
mais patética. Aliás, a questão euro-
peia é exatamente se ele é o único obs-
táculo que fez oposição à retirada de
Hamon em favor de Jean-Luc Mélen-
chon após o primeiro turno das elei-
ções presidenciais de 2017, exatamen-
te por preferir a humilhação a uma
vitória da esquerda.
Ora, existe toda uma parcela da
opinião da esquerda que, desaprovan-
do, às vezes com veemência, os con-
teúdos particulares das políticas euro-
peias e as obrigações que delas
resultam sobre a conduta das políticas
nacionais, se revolta também contra a
ideia geral , no entanto consequente , de
romper com o euro. Essa parcela dis-
cursa repetidamente contra a “Europa
austeritária”, mas, logo que lhe é pro-
posto sair dela, responde: “De maneira
alguma!”. Enquanto esse impasse
continuar sem solução, a esquerda não
chegará ao poder.
É que terá sempre o que fazer com a
classe educada, que é o ponto nevrál-
gico dessa situação. Acreditando ser a
ponta de lança da racionalidade na so-
ciedade, essa classe é, de fato, seu pon-
to de incoerência por excelência, pois é


justamente ela que, mais do que qual-
quer outra, é atormentada pelos senti-
mentos de medo, sublimados no hu-
manismo europeu e em posturas
internacionalistas abstratas que lhe
permitem, acredita, ocupar o primeiro
lugar – qualquer que seja o preço eco-
nômico e social (para os outros). É jus-
tamente ela, entretanto, que não para
de buscar no “euro democrático” e em
seu “Parlamento” uma resolução fan-
tástica para suas contradições inter-
nas. E, então, é com ela, como observa
Palombarini, que, para sua infelicida-
de, uma estratégia política de esquer-
da deve contar.
Como, então, manter um arco de
forças que reúna desde classes popu-
lares, que experimentam em primeira
mão o desgaste das políticas europeias
e, por isso, são menos atormentadas
com preciosos escrúpulos do euro-
peísmo, até a burguesia educada de es-
querda, cuja sensibilidade ferida faz de
qualquer ideia de romper com a Euro-
pa um motivo de crise histérica? Não
há a menor dúvida de que às primeiras
será preciso dar a saída do euro, pois
elas vivem o problema concreto. Já à se-
gunda é preciso reservar um trata-
mento especial – ou seja, encontrar al-
go para lhe conceder.
Em que consistiria, portanto, a con-
tribuição do internacionalismo real
para a resolução do dilema europeu
para a esquerda? Em não deixar a clas-
se educada órfã da Europa e lhe dar
uma perspectiva histórica europeia de
mudança. Ou seja, convencê-la de que
abandonar seu objeto transnacional, o
euro, não a priva de tudo, permite-lhe
ainda acreditar no que ela ama acredi-
tar e no que, de certo ponto de vista, ela
tem razão de acreditar: de forma muito
geral, o esforço de descentralizar os
povos nacionais, de aproximá-los o
máximo possível, a começar, logica-
mente, pela escala europeia. Mas tam-
bém não de qualquer maneira nem a
qualquer preço , isto é, deixando passar,
sem refletir, esse desejo internaciona-
lista bem fundamentado nas piores
proposições do economismo neolibe-
ral – o internacionalismo da moeda, do
comércio e das finanças.
Sem reduzir o esforço para conven-
cê-la de que não haverá “outro euro”,
que “o euro democrático” não existirá,
é preciso então dizer para a classe edu-
cada, que em boa parte, de fato, tem a
sorte de uma hegemonia de esquerda
em suas mãos, que ela não tem de re-
nunciar ao europeísmo genérico que a
segura pelo coração. E, portanto, lhe
fazer uma nova proposta sobre esse
assunto – uma proposta suficiente-
mente forte para substituir a promessa
em decadência do euro, pela qual a
burguesia de esquerda continua, no
entanto, a se interessar porque tem um
enorme medo do vazio. A promessa de
uma espécie de “novo projeto euro-

1 “Face à Macron, la gauche ou le populisme? ”
[Diante de Macron, a esquerda ou o populismo?],
blog de Stefano Palombarini, 10 jul. 2017. Disponí-
vel em: <https://blogs.mediapart.fr>.

peu”, ao qual se trata de dar a consis-
tência de uma perspectiva histórica.
Trata-se do que é possível reapro-
ximar dos povos europeus por outras
vias que não sejam a da economia:
estudos universitários e, por que não,
liceus, artes, pesquisa, oficinas siste-
máticas de traduções cruzadas, histo-
riografias desnacionalizadas, tudo é
bom para ser intensamente “europei-
zado” – e, por isso, “europeizante”.
Entretanto, não se é obrigado a
continuar no registro das interven-
ções em direção à “Europa da cultura”,
da qual se sabe bem que classes sociais
são suas principais beneficiárias. Na
realidade, a Europa tem um famoso
passivo a absorver junto às classes po-
pulares. Ela teria um grande interesse
em se lembrar disso, não em nome de
uma economia do perdão ou da reden-
ção, mas porque decisivamente existe
seu próprio interesse político em ter
essas classes com ela – sua hostilidade,
perfeitamente embasada, digamos,
não terá sido sua cicatriz lancinante
desde o Tratado de Maastricht? Se, en-
tão, essa nova Europa, desembaraçada
do euro, quiser restabelecer algum
vínculo com essas classes, ela terá in-
teresse em se dirigir muito diretamen-
te a elas – e fundamentalmente em sua
linguagem: aquela, concreta, da inter-
venção financeira. Para ela, não há for-
ma mais simples de tornar desejável
que se substituam os Estados em de-
clínio, abandonados por ela durante
todo o reinado da moeda única: gran-
des programas de recuperação dos
bairros afastados, planos de melhoria
dos meios de comunicação digitais,
fundos de reindustrialização, finan-
ciamento de redes de educação popu-
lar e apoio às organizações associati-
vas são as ideias que faltaram e com as
quais a Europa conseguiria seriamen-
te recuperar uma “notoriedade”. E, co-
mo as ideias não devem faltar, os meios
também não. Na verdade, é aqui que se
vê a diferença entre as palavras ao léu
e a consistência de um projeto político,
cuja ambição se mede muito clara-
mente pelos recursos que utiliza, ava-
liados muito simplesmente de acordo
com um objetivo quantitativo global
indicando uma trajetória a médio pra-
zo visando a uma meta orçamentária
de 3% e, em seguida, por que não, de
5% do PIB europeu – em vez do ridícu-
lo 1% de hoje.
Não a partir do nada e como se ne-
nhuma dessas coisas ainda não exis-
tissem – Erasmus [European Region
Action Scheme for the Mobility of Uni-
versitary Students (Plano de Ação da
Comunidade Europeia para a Mobili-
dade de Estudantes Universitários)],
Fundo Europeu de Desenvolvimento
Regional (Feder) etc. Mas é preciso
ampliar consideravelmente seu cam-
po e também os destinatários, princi-
palmente as classes até agora total-

mente abandonadas; é preciso dar a
todas essas ações uma amplitude iné-
dita, reuni-las em um discurso de al-
cance histórico e, para lhe dar mais
crédito, prever novas e visíveis expres-
sões institucionais. Aliás, expressões
necessárias, pois ele precisará de uma
instância que decida áreas, volumes e
distribuição das intervenções. O que
pode ser senão uma Assembleia? De
imediato, qualquer outra coisa dife-
rente do “Parlamento do euro”, simu-
lacro democrático destinado a acober-
tar a irremediável falta de democracia
da união monetária.
No ponto em que nos encontramos,
é possível começar a esperar que, mes-
mo a burguesia educada que se vê co-
mo a melhor em matéria de inteligên-
cia, quando, na verdade, é na maior
parte das vezes uma confusa ilusão po-
lítica, possa compreender que é urgen-
te salvar a Europa dela própria e que
isso só será feito à custa de uma mu-
dança radical. Porém, não por alguma
“transformação” da moeda única, con-
genitamente, e durante muito tempo
ainda ordoliberal, mas precisamente
por seu próprio abandono. A Europa
não ganhará novamente os favores dos
povos que lhes entregaram tudo o que
ela os impediu até agora. E principal-
mente o direito democrático funda-
mental de experimentar, de avaliar, de
tentar outra coisa. Com a retirada da
camisa do euro, tudo é possível de no-
vo, evidentemente de acordo com a au-
todeterminação soberana de cada or-
ganismo político. E uma vez que se
trata de pensar em uma estratégia para
a esquerda: reavaliação das finanças
de mercado, socialização dos bancos,
maior poder acionário, propriedade
social dos meios de produção...
É bem possível explicar aos mais
inquietos que persistir na via do euro
significará o túmulo de qualquer espe-
rança da esquerda; que a ideia de uma
comunidade política europeia não de-
manda, portanto, ser retirada da pai-
sagem; que ela poderá ser salva, con-
tanto que seja consentido lhe oferecer
suas condições de possibilidade histó-
rica, como o coroamento de uma longa
aproximação, mas desta vez realmen-
te “cada vez mais estreita”, entre os po-
vos do continente, para o qual o “novo
projeto europeu”, desintoxicado do ve-
neno liberal da União atual, enfim,
fornecerá seu tempo, seus meios e
suas possibilidades.

*Frédéric Lordon é economista e filósofo.
Diretor de pesquisa no Centre National de la
Recherche Scientifique (CNRS) e autor de
La Condition anarchique [A condição anár-
quica], Seuil, Paris, 2018.
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