Le Monde Diplomatique - Edição 140 (2019-03)

(Antfer) #1

MARÇO 2019 Le Monde Diplomatique Brasil 3


EDITORIAL


A guerra contra os diferentes

POR SILVIO CACCIA BAVA


© Claudius

C


omo entender e superar esta
polarização e violência que
marcam nossa convivência co-
mo brasileiros e brasileiras nos
dias de hoje?
O primeiro passo é olhar para a si-
tuação real. Pelo lado do cidadão e da
cidadã comuns, o que todos sentem na
pele é o desemprego, a precarização
do trabalho e das condições de vida, a
violência, a discriminação, a frustra-
ção, a insegurança. Muitos estão endi-
vidados, angustiados, sem poder pa-
gar suas contas.
Ao tratarmos da situação atual, não
podemos nos esquecer de que o Brasil
é dos países mais desiguais do planeta
e que 60% dos brasileiros vivem com
um salário mínimo. Temos uma desi-
gualdade estrutural, que vem desde os
tempos da Colônia e da escravidão, e
que não se altera mesmo se a econo-
mia for bem.
A essa desigualdade estrutural se
somam as políticas de austeridade,
impostas em escala global pelo capita-
lismo financeirizado e que são a inspi-
ração do atual governo brasileiro.
O segundo passo é olhar para as
crenças dos eleitores. Houve uma re-
jeição aos partidos políticos que domi-
naram a cena pública nas últimas dé-
cadas expressa na pífia votação do
PSDB e do MDB nas últimas eleições.
Nenhum deles, à exceção do PT, ultra-
passou 5% da preferência do eleitor.
A estigmatização do PT fazia parte
da agenda de Bolsonaro, baseada nos
elementos de corrupção denunciados
desde o Mensalão e na acusação de


que é um partido de esquerda (?). Mas
a corrupção é generalizada. No con-
junto, todos os partidos grandes foram
acusados de não atender ao que o povo
precisa e de roubar descaradamente
em prejuízo do bem comum.
O tema do combate à corrupção e a
luta contra o crime foram centrais pa-
ra eleger Bolsonaro. Como ficam en-
tão os eleitores quando descobrem
que a corrupção é praticada há muito
tempo pelos Bolsonaros, com todo seu
laranjal, e que estes estão profunda-
mente envolvidos com as milícias, in-
cluindo aquela que se supõe que te-
nha matado Marielle?
A corrupção e o crime ocuparam
um lugar central na campanha eleito-
ral para ocultar a imposição das políti-
cas econômicas de austeridade que re-
tiram direitos dos trabalhadores e
trabalhadoras. Somada às discrimina-
ções e desigualdades históricas que
castigam negros, mulheres e pobres de
maneira geral, temos uma situação ex-
plosiva que atualmente é contida pela
imposição do terror por parte de um
Estado policial e violento. Os assassi-
natos e a violência policial que estão
sendo postos em prática nas favelas de
São Paulo e Rio de Janeiro, assim como
nos assentamentos rurais, são expres-
são dessas políticas do novo governo.
O governo atual tem como princi-
pal objetivo responsabilizar o PT e a
esquerda de maneira geral pela situa-
ção de crise econômica e social que vi-
vemos. Para ele, os grandes bancos não
têm responsabilidade pela desigualda-
de existente, mesmo que quase a meta-

de do orçamento público se destine a
pagar apenas os juros da dívida públi-
ca. E conclama seus seguidores a con-
siderar seus compatriotas que não
pensam como eles como inimigos a se-
rem combatidos e mesmo extermina-
dos. Bolsonaro convoca uma luta fra-
tricida, considerando que essa é uma
guerra que precisam vencer contra to-
dos os diferentes. E manipulam as in-
formações, criam fake news , para ali-
mentar o ódio: ódio de classe, ódio de
gênero, ódio à diferença, ódio ao proje-
to popular e democrático.^1
Com a falência das expectativas e o
colapso da confiança por parte das
maiorias, ao que se soma o fechamen-
to dos canais de diálogo, os atuais go-
vernantes destroem a política e a de-
mocracia como espaço de negociação
de interesses entre os distintos grupos
sociais, optam pela imposição, pela
força de suas políticas e abrem espaço
para mais violência e opressão.
A TV e a grande imprensa, contro-
ladas pela elite, desencadearam há
anos uma campanha que alimenta o
ódio e ataca o PT. Seus programas
abertos mostram um país constante-
mente ameaçado pelo crime organiza-
do, com a população sendo vitimada
todos os dias, com uma polícia que se
torna a única salvação contra as amea-
ças cotidianas de quem sai todos os
dias para trabalhar. Com medo, a po-
pulação aceita a violência e os assassi-
natos praticados pelos policiais. E, co-
mo já não se acredita na política, nas
verdades que levaram o povo a eleger
seus representantes, então tanto faz se

é verdade ou fake news , o que importa
é que as falas reforcem sua visão e suas
preferências.
Se a votação expressou que o povo
não queria mais do mesmo, que há
uma rejeição ao sistema político como
um todo, como fica agora que a alter-
nativa de apostar em Bolsonaro se re-
vela um desastre?
Se cabe aos policiais enfrentar o
crime, cabe à política enfrentar o ódio.
Segundo Jacques Rancière, só elabo-
rando o ódio se poderá disputar terre-
no com essa lógica de guerra. A politi-
zação dessa descrença, dessa situação
de mal-estar, “é o melhor antídoto
contra a sua instrumentalização por
parte daqueles que querem encontrar
bodes expiatórios entre os outros”.^2
O caminho que Rancière aponta é
o de questionar as causas desse de-
sencanto e frustração, os processos e
discursos que alimentam o ódio, e
combater de fato o desemprego, as de-
sigualdades e as discriminações.
Ao lado disso precisamos encon-
trar novas formas de convivência, am-
pliando o espaço público, recuperan-
do o lugar central da política como
espaço de negociação, apresentando/
construindo alternativas para que
possamos viver bem entre nós e com
os diferentes.

1 Doris Rinaldi, “O discurso do ódio, uma paixão
contemporânea”. In: Miriam Debieux Rosa, Ana
Maria Medeiros da Costa e Sérgio Prudente
(orgs.), As escritas do ódio – Psicanálise e política,
Escuta/Fapesp, São Paulo, 2018.
2 Jacques Rancière, “Como sair do ódio? ” – entre-
vista publicada no blog da Boitempo em 10 maio
2016.
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