Le Monde Diplomatique - Edição 140 (2019-03)

(Antfer) #1

30 Le Monde Diplomatique Brasil^ M A RÇO 2019


REFAZER A UNIÃO


Por uma “Primavera Europeia”

em maio

A eleição do próximo Parlamento Europeu acontece entre os dias 23 e 26 de maio. O quadro geral é sombrio:


as condições do Brexit permanecem confusas, a relação com os Estados Unidos é marcada pelas humilhações deliberadas


de Washington, a extrema direita vai de vento em popa e a esquerda não chega a um acordo sobre um projeto europeu


POR YANIS VAROUFAKIS*


A


crise financeira planetária de
2008 – a de 1929 de nossa gera-
ção – desencadeou uma reação
em cadeia em toda a Europa. Em
2010, ela já tinha destruído os alicerces
da zona do euro, levando os membros
do establishment a transgredir suas
próprias regras a fim de salvar os in-
vestimentos de seus amigos banquei-
ros. Em 2013, a ideologia neoliberal,
que até então tinha legitimado a tec-
nocracia oligárquica da União Euro-
peia, espatifou-se, após ter jogado na
miséria milhões de pessoas aplicando
políticas oficiais: o socialismo para os
detentores do capital financeiro e uma
austeridade implacável para o maior
número de pessoas. Essas políticas fo-
ram conduzidas tanto pelos conserva-
dores quanto pelos sociais-democra-
tas. Durante o verão de 2015, a renúncia
do governo do partido Syriza, na Gré-
cia, teve como consequências a divi-
são e a desmoralização da esquerda.
Ela acabou com a esperança efêmera
de ver progressistas que surgiram das
ruas e das praças modificarem as rela-
ções de força na Europa.
Desde então, a cólera exacerbada
pelo desespero deixou um vazio, rapi-
damente preenchido de um extremo a
outro da Europa pela misantropia or-
ganizada por uma Internacional na-
cionalista que encanta o presidente
norte-americano Donald Trump.
Chumbada por um establishment que
lembra cada vez mais a infeliz Repúbli-
ca de Weimar, assim como pelo racis-
mo que as forças deflacionárias engen-
dram, a União se fende. A chanceler
alemã se dirige para a saída, o projeto
europeu do presidente francês se mos-
tra natimorto e as eleições para o Par-
lamento Europeu no próximo mês de
maio oferecem a última oportunidade
para os progressistas terem peso no ní-
vel pan-europeu.
Desde seu nascimento, em 2016, o
Movimento pela Democracia na Euro-
pa 2025 (DiEM25) teve como objetivo
aproveitar essa chance.^1 Em um pri-
meiro momento, preparamos nosso
programa, o “New Deal for Europe”
[Novo Acordo para a Europa]. Em se-


guida, convidamos outros movimen-
tos e partidos para enriquecer e criar
conosco nossa “Primavera Europeia”,
primeira lista transnacional de candi-
datos que defendem um programa co-
mum de escala europeia. Antes da dis-
cussão desse projeto, a esquerda deve
encarar de frente dois pontos cruciais
que a dividem e enfraquecem um pou-
co os progressistas em todo o conti-
nente: o problema das fronteiras e a
questão da União Europeia.
Uma coisa muito curiosa ocorreu
nos últimos anos: um grande número
de cidadãos de esquerda foi levado a
pensar que fronteiras abertas prejudi-
cavam a classe operária. “Jamais fui
favorável à liberdade de instalação”,
afirmou diversas vezes Jean-Luc Mé-
lenchon (do movimento França Insub-
missa). Fazendo uma intervenção no
Parlamento Europeu em julho de 2016
sobre a questão dos trabalhadores
deslocados provisoriamente para ou-
tro país da União Europeia, ele decla-
rou que, cada vez que um deles chega,
“rouba o pão dos trabalhadores que se
encontram no lugar” – afirmação pela
qual, posteriormente, pediu descul-
pas, mesmo que sua análise quanto
aos efeitos das migrações sobre os sa-
lários internos não tenha mudado.

Esse debate não é novo. Em 1907,
Morris Hillquit, fundador do Partido
Socialista da América, propôs uma
resolução visando acabar com “a im-
portação deliberada de mão de obra
estrangeira a baixo custo”, defenden-
do que “os migrantes constituíam,
sem estar conscientes disso, um veio
de furadores de greve”. O novo, hoje,
é que uma boa parte da esquerda pa-
rece ter se esquecido da crítica muito
viva de Lenin, formulada em 1915
nestes termos: “Acreditamos que não
é possível ser internacionalista e ao
mesmo tempo favorável a tais restri-
ções... Esses socialistas, na realidade,
s ã o c h a u v i n i s t a s”.
Em um artigo de 29 de outubro de
1913, Lenin forneceu o contexto: “Não
há dúvida alguma de que somente a
pobreza extrema pode obrigar as pes-
soas a abandonar sua terra natal e que
os capitalistas exploram os trabalha-
dores imigrantes das maneiras mais
vergonhosas. Mas somente os reacio-
nários podem se recusar a ver o signifi-
cado progressista dessa migração mo-
derna das nações. O capitalismo atrai
massas de trabalhadores do mundo
inteiro. Ele quebra as barreiras e os
preconceitos nacionais e une os traba-
lhadores de todos os países”.

A VIDA PODE MELHORAR NAS REGRAS ATUAIS
O movimento DiEM25 retoma a
análise de Lenin: os muros que entra-
vam a livre circulação das pessoas e
das mercadorias são uma resposta
reacionária ao capitalismo. A resposta
socialista consiste em derrubar os mu-
ros, permitir ao capitalismo se auto-
destruir enquanto organizamos a re-
sistência transnacional à exploração.
Não são os migrantes que roubam os
empregos dos trabalhadores locais,
mas as políticas de austeridade dos go-
vernos que se inscrevem na luta de
classes engajada em benefício da bur-
guesia nacional.
Esse é o motivo pelo qual não per-
mitimos que uma forma “alijada” de
xenofobia contamine nosso progra-
ma. Como diz Slavoj Žižek, o naciona-
lismo de esquerda não é uma boa res-
posta para o nacional-socialismo.
Nossa posição sobre os novos imigran-
tes defende igualmente dois pontos:
nos recusamos a fazer uma triagem
entre migrantes e refugiados e deman-
damos à Europa que os deixem entrar
(#LetThemIn).
Companheiros de diversos países
nos consideram utópicos. Segundo
eles, a União Europeia não pode ser
reformada. Se eles tiverem razão, a
melhor resposta dos progressistas é
trabalhar para o “Lexit”, ou seja, uma
campanha da esquerda para uma de-
sintegração controlada da União? Eu
guardo com emoção uma lembrança
de minhas intervenções na Alema-
nha diante de salões lotados no dia
seguinte da capitulação do Syriza pe-
rante Angela Merkel e a Troika.^2 As
pessoas presentes explicaram que o
que havia sido feito na Grécia não ti-
nha sido em nome delas, em nome do
povo alemão. Eu me lembro de como
elas ficaram aliviadas em saber que o
DiEM25 tinha feito um apelo para
criar um movimento transnacional a
fim de tomar o controle de institui-
ções da União – Banco Europeu de
Investimento (BEI) e Banco Central
Europeu (BCE) – e de redesenvolvê-
-las de acordo com os interesses de
todos os cidadãos.

© DiEM25
Yanis Varoufakis em reuinão do DiEM25 em Lisboa
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