Le Monde Diplomatique - Edição 140 (2019-03)

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32 Le Monde Diplomatique Brasil^ M A RÇO 2019


P


or muito tempo, as vítimas e seu
sofrimento foram negligencia-
dos por uma justiça que tinha
por objetivo prioritário sancio-
nar o criminoso e proteger a socieda-
de. Progressivamente, elas viram seus
direitos serem reconhecidos e o surgi-
mento de um estatuto, o que tornou
possível, em muitos casos, uma repa-
ração mais justa do dano sofrido. Os
movimentos feministas e as associa-
ções humanitárias contribuíram mui-
to para isso nas duas últimas décadas.
Seus esforços permitiram que o Con-
selho da Europa adotasse diversos re-
latórios sobre a ajuda e a indenização
que as vítimas podem, a partir de ago-
ra, receber. Na França, esse foi o objeto
da lei de 15 de junho de 2000. O Cana-
dá, por sua vez, dispõe desde 2015 de
um código dos direitos das vítimas
que garante a estas um lugar na admi-
nistração da justiça. Elas são ouvidas
independentemente de sua contribui-
ção para a manifestação da verdade.


QUANDO O TRIBUNAL SE FAZ DE PSICÓLOGO


A justiça transfigurada pelas vítimas

Desde sempre, a intensidade dramática de certos casos criminais desafia a serenidade da justiça. Essa tensão própria


do processo penal cresce com a deificação contemporânea das vítimas. O tribunal não precisa mais simplesmente punir


um culpado, ele deve reparar os sofrimentos. Assim, vítimas tornam-se procuradores, e as penas ficam mais pesadas


POR ANNE-CÉCILE ROBERT*


Pouco a pouco a vítima se torna o
elemento central do processo, que, no
entanto, tem como função principal
julgar o acusado. E ela é cada vez mais
solicitada, mesmo estando numa posi-
ção difícil para conseguir apreciar se-
renamente os fatos. Os testemunhos,
principalmente se são impressionan-
tes, aumentam o risco de perturbar a
reflexão dos jurados e de alterar seu
julgamento a respeito de uma pessoa
cujo futuro está em jogo. “É legítimo
que a vítima tenha todo o seu espaço
no processo. Mas não se deve ceder à
tentação de transformá-la, segundo os
termos do decano Jean Carbonnier,
‘de sujeito passivo do delito em agente
marcial da repressão’”, advertia o ex-
-presidente da Corte de Apelação de
Paris, Jacques Degrandi, em um dis-
curso de 2013. “Atenção! Progressiva-
mente, a vítima se torna o centro do
processo penal e de suas consequên-
cias [...] Levar longe demais uma lógica
que lhe dá, mesmo que indiretamente,

a condução do processo vai se voltar
contra ela, cedo ou tarde.”
Criada em 1998 pelo Estatuto de
Roma, a Corte Penal Internacional
(CPI) é exemplar dos processos em an-
damento. O processo prevê que a víti-
ma participe ativamente da adminis-
tração da prova. Sua contribuição não
se limita mais às fronteiras probató-
rias do desenvolvimento, explica a ad-
vogada Francesca Maria Benvenuto.^1
Diante da CPI, ela apresenta elemen-
tos de prova com o objetivo de explicar
e justificar a lesão sofrida, mas tam-
bém para estabelecer a culpa do acu-
sado. Este se encontra, a partir de en-
tão, diante de dois acusadores: não
existe mais igualdade das armas.

NARRATIVAS ESPETACULARES
Ainda que a justiça nunca tenha si-
do totalmente impermeável aos movi-
mentos de opinião, ritmados pela mí-
dia que adora notícias populares, essa
tendência se generaliza. “Quando vejo

o que está acontecendo nos Estados
Unidos e no Canadá, fico espantado
com a evolução que acelerou o endure-
cimento dos costumes penais e peni-
tenciários. A vítima, diretamente pre-
sente nas comissões, pode ser ouvida
mesmo em um debate sobre uma revi-
são de pena”, conta o magistrado fran-
cês Denis Salas. “Ela também pode
produzir um vídeo, dar qualquer in-
formação, com a seguinte legitimida-
de, que merece reflexão: ‘A sentença é
muito pequena, vista a gravidade do
crime que eu sofri’.”^2 O tribunal se
torna um local de reconhecimento
dos sofrimentos, mesmo que a ex-
pressão das vítimas não provoque de
maneira nenhuma um avanço na
busca pela exatidão dos fatos e não
contribua para determinar a respon-
sabilidade do acusado.
O processo não é mais simplesmen-
te o espaço em que a sociedade decide
sobre o destino reservado a um indiví-
duo sobre o qual pesam suspeitas; ele
deixa de ser principalmente o meio pa-
ra que a sociedade reflita sobre o risco
potencial que um indivíduo apresenta
para a coletividade. O tribunal se torna
um espaço de expressão, de gestão e,
principalmente, de reparação do sofri-
mento das vítimas. E nada é mais peri-
goso para o equilíbrio dos debates do
que adotar a dor como um critério de
avaliação da culpa. Uma velhinha que
tem seu gato assassinado, único ser vi-
vo que lhe fazia companhia, vai sofrer
muito. Mesmo uma pena pesada não
estará à altura de sua dor. No entanto,
ressalta Éric Dupond-Moretti, “o pro-
cesso penal não é o anexo de um con-
sultório de psicologia nem um escritó-
rio de Talião”.
“O tribunal”, acrescenta, “se reúne
para julgar um indivíduo a quem a so-
ciedade pede explicações por um cri-
me do qual é acusado. O objetivo é es-
te: um homem diante do julgamento
da comunidade de homens. O sistema,
por mais imperfeito que seja, foi con-
cebido assim, para substituir a prática
da vingança individual.”^3 A centralida-
de da vítima e a intensidade do baru-
lho midiático propagado em torno de-
la podem perturbar a serenidade da
justiça. “Em média, cada reportagem
sobre uma notícia a respeito de um cri-
me divulgada nos jornais televisivos
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