Le Monde Diplomatique - Edição 140 (2019-03)

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MARÇO 2019 Le Monde Diplomatique Brasil 33


das 20 horas aumenta em 24 dias a du-
ração das penas pronunciadas no dia
seguinte pelos tribunais”, estima o
Instituto das Políticas Públicas de Pa-
ris.^4 A vítima, real ou presumida, des-
via o julgamento judiciário. Circuns-
tâncias atenuantes e princípio de
individualização das penas se apagam
em proveito de sanções pesadas quase
automáticas.
O erro judiciário do qual foi vítima
Loïc Sécher encontra sua origem na
emoção suscitada pelo testemunho de
sua alegada vítima. Acusado de estu-
pro por uma adolescente, esse traba-
lhador agrícola foi inocentado, depois
de anos na prisão, pelo novo testemu-
nho da mesma mulher, agora maior de
idade, que reconheceu ter inventado
tudo. Como no caso de Outreau, em
que diversas pessoas foram condena-
das erroneamente por pedofilia, a
justiça encontrou as maiores dificul-
dades em voltar atrás sobre uma de-
cisão equivocada, tomada sob in-
fluência de narrativas tão imaginárias
quanto espetaculares, e com a preo-
cupação, bem legítima, de proteger
menores de idade.^5 Nem é preciso di-
zer que as simplificações midiáticas,
o culto do “tempo real” e as redes so-
ciais não favorecem a serenidade
nesses casos delicados.
Em nome do sofrimento, autêntico,
das vítimas, esquece-se o princípio de
individualização das penas, essa con-
quista das sociedades democráticas
graças à qual se julgam os atos, mas
também uma pessoa, com sua história
e suas características. Mas, ouve-se en-
tão como refutação, o criminoso se
abstrai da humanidade; por conse-
quência, a sociedade pode se abstrair
dela também. Com a única diferença,
replica Dupond-Moretti, que “não basta
bater no autor de um crime para dimi-
nuir a dor das vítimas. Não é no tribunal
que se vive o luto, é no cemitério”.^6
Por sua longa observação do de-
senrolar dos processos da CPI, Maria


Francesca Benvenuto conclui que o
processo penal internacional se apro-
xima cada vez mais de um percurso te-
rapêutico. Segundo alguns juristas, a
justiça seria uma “etapa na necessária
reconstrução da vítima”,^7 e o novo lu-
gar obtido no processo, uma “primeira
resposta pertinente a seus múltiplos
t r a u m a s”.^8

Os eventuais desvios de processo
penal se revelam ainda mais fáceis
quando o crime é grave ou quando o
dano sofrido (por exemplo, quando de
um acidente de transporte que fez de-
zenas de vítimas) é imenso. Instala-se
facilmente não apenas a ideia de que o
castigo deve ser à altura do dano, mas
de que é preciso encontrar um culpa-
do, mesmo quando não há. As catás-
trofes naturais nem sempre têm res-
ponsáveis diretos ao alcance da justiça,
pois aqueles que causam o aquecimen-
to global raramente vivem nos locais
onde suas consequências se sentem
com mais força.
No entanto, as vítimas reclamam
por “justiça”. Depois das inundações
assassinas causadas pela tempestade
Xynthia na costa oeste da França, em
2010, o tribunal, sob a pressão dos
queixosos e da mídia, deu provas de
uma extrema severidade perante os
acusados. Os eleitos locais que tinham
dado a autorização de construção ou a
quem se censurava, por vezes legiti-
mamente, por não terem tomado as

1 Francesca Maria Benvenuto, “La Cour pénale in-
ternationale en accusation” [A Corte Penal Interna-
cional em acusação], Le Monde Diplomatique,
nov. 2013.
2 Denis Salas, “Le couple victimisation-pénalisation”
[A dupla vitimização-penalização], Nouvelle Revue
de Psychosociologie, v.2, n.2, Paris, 2006.
3 Éric Dupond-Moretti (com Stéphane Durand-
-Souffland), Directs du droit [Diretas do direito],
Michel Lafon, Paris, 2018.
4 Aurélie Ouss e Arnaud Philippe, “L’impact des mé-
dias sur les décisions de justice” [O impacto da
mídia sobre as decisões da justiça], Instituto de
Políticas Públicas, nota IPP n.22, jan. 2016. Dispo-
nível em: <www.ipp.eu>.
5 Ler Gilles Balbastre, “Les faits divers, ou le tribunal
implacable des médias” [As notícias populares, ou
o tribunal implacável da mídia], Le Monde Diplo-
matique, dez. 2004.
6 Philosophie Magazine, n.116, Paris, fev. 2018.
7 “Nicole Guedj: ‘Non, je ne suis pas inutile’” [Nicole
Guedj: “Não, eu não sou inútil”], Le Monde, 30 set.
2004.
8 Julian Fernandez, “Variations sur la victime et la jus-
tice pénale internationale” [Variações sobre a víti-
ma e a justiça penal internacional], Amnis, Aix-en-
-Provence, jun. 2006. Disponível em: <https://
journals.openedition.org/amnis/>.

medidas de proteção necessárias fo-
ram acusados de todos os males, inclu-
sive os que iam para além deles, como
as consequências da fúria da natureza.
Os magistrados insistiram no dano so-
frido pelas vítimas, sem consideração
séria das cadeias causais, e difamaram
as pessoas em questão. O veredicto,
acompanhado de considerações mo-
rais, foi pesado: o ex-prefeito de La Fau-
te-sur-Mer, especialmente, foi conde-
nado a quatro anos de prisão em
regime fechado, uma pena de uma se-
veridade inédita para um delito não in-
tencional, já que a sanção mais pesada
até então tinha sido de dez meses de
prisão com sentença suspensa. Em se-
gunda instância, a sanção foi final-
mente reduzida para dois anos de pri-
são com sentença suspensa por
“homicídios involuntários”.
A pressão penal exercida sobre os
eleitos pela palavra das vítimas tam-
bém pode ser percebida como uma
compensação à sua irresponsabilida-
de política crescente: nas democracias
representativas em crise, a justiça se
torna um meio de atingir os dirigentes
que as instituições deixam fora do al-
cance. A Constituição da Quinta Repú-
blica, por exemplo, concede poderes
importantes para o presidente e sua
maioria parlamentar, mesmo que es-
tes tenham sido eleitos em condições
calamitosas, como foi o caso em 2017,
quando Emmanuel Macron conse-
guiu apenas 43,61% dos inscritos no
segundo turno da eleição presidencial,
enquanto a abstenção nas eleições le-
gislativas atingia 57,36% dos inscritos.
As leis adotadas em tais circunstân-
cias não são igualmente aplicadas em
todas as áreas (fiscal, social, securitá-
ria etc.). A responsabilidade dos eleitos
deixa então o terreno eleitoral e passa
para o terreno penal. Foi assim que o
escritor Édouard Louis censurou pes-
soalmente o presidente Jacques Chi-
rac, o primeiro-ministro Alain Juppé e
o ministro Xavier Bertrand, sobre as

disposições regulamentares que, se-
gundo ele, contribuíram para a defi-
ciência permanente de seu pai, vítima
de um acidente do trabalho.
Quando o sofrimento vem de uma
ordem social ou das lógicas de um sis-
tema que privam uma pessoa de seus
direitos fundamentais, a ação se im-
põe, e não a compaixão. A transferên-
cia do favor popular do herói para a ví-
tima diz muito sobre o dolorismo atual
e o sentimento de impotência que o
acompanha. Os cidadãos se estimam
tão despossuídos dos meios de agir em
seu cotidiano e sobre seu destino que
se sentem mais próximos de uma pes-
soa que sofre o mal do que daquela que
luta para vencê-lo.

*Anne-Cécile Robert é jornalista do Le
Monde Diplomatique.

E nada é mais
perigoso para
o equilíbrio dos
debates do que adotar
a dor como um
critério de avaliação
da culpa
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