Le Monde Diplomatique - Edição 140 (2019-03)

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MARÇO 2019 Le Monde Diplomatique Brasil 35


te de água do continente, dotada do
maior potencial hidrelétrico, maior
produtor mundial de cobalto, produ-
tor importante de cobre, ela poderia se
tornar “a Arábia Saudita do lítio”, o
metal empregado na fabricação das
baterias dos carros elétricos. Mas esse
gigante econômico ainda carrega as
feridas dos dois conflitos que o des-
truíram em 1997 e em 2002. Implican-
do os Estados vizinhos (Ruanda,
Uganda e Angola, em especial), mas
também os mais distantes (Namíbia,
Chade e Zimbábue), eles são significa-
tivamente qualificados como “guerras
mundiais africanas”.
Os países limítrofes conservam o
pavor de que uma degradação da situa-
ção de segurança e humanitária na
RDC provoque um afluxo de refugia-
dos em seus territórios. E seus temores
não são infundados. Nas províncias de
Kivu, a instabilidade provocada por
uma miríade de grupos armados, na-
cionais e estrangeiros, mas também
por elementos indisciplinados das
Forças Armadas da República Demo-
crática do Congo (FARDC), é tal que as
operações eleitorais não puderam
acontecer em todo o território. Nas
circunscrições de Beni e de Butembo,
no Kivu do Norte, a eleição simples-
mente não aconteceu. No Kivu do Sul,
os rebeldes burundeses das Forças Na-
cionais de Libertação (FNL) enfrentam
de tempos em tempos o Exército oficial
de Bujumbura. Os trabalhadores hu-
manitários estimam o número de des-
locados internos em mais de 4,5 mi-
lhões, 1,3 milhão apenas na região do
Grande Kasaï, no centro do país, onde
os enfrentamentos com as FARDC te-
riam feito 3 mil mortos desde 2016. Al-
gumas centenas de milhares de habi-
tantes do Kasaï fugiram para Angola,
onde as concessões de diamantes das
províncias do Lunda Norte e do Lunda
Sul foram invadidas pelos garimpeiros
congoleses. Invocando o direito de
proteger seus recursos minerais, Luan-
da expulsou entre setembro e dezem-


bro de 2018 mais de 400 mil pessoas, na
maioria congoleses, quando de uma
operação batizada de Transparência.
Oriundo da etnia dos Lubas do Ka-
saï, Tshisekedi suscita no país a espe-
rança de uma regulamentação pacífi-
ca dessa crise. No final de janeiro,
menos de uma semana depois da pos-
se do novo presidente, cerca de seis-
centos milicianos, reconhecíveis pelo
lenço vermelho que lhes cinge a cabe-
ça, depuseram armas: fuzis AK47, fu-
zis de caça, machados, bastões, flechas
e até mesmo fetiches ou amuletos.
Vinte vezes menos povoado do que
a RDC e seus 80 milhões de habitan-
tes, o Congo-Brazzaville vigia como se
fosse leite fervente a situação do outro
lado do Rio Congo, atemorizado pelo
fantasma de uma onda de refugiados
que o afundaria. A vontade de contro-
lar os fluxos migratórios já se traduziu
na expulsão brutal de mais de 179 mil
cidadãos da RDC em situação ilegal na
Operação Mbata ya Bakolo [“o tapa
dos mais velhos”], em 2014. Esse te-
mor foi despertado novamente em de-
zembro de 2018 pelos enfrentamentos
dos Yumbi, na província de Mai-N-
dombe, onde as operações eleitorais
foram também suspensas. Ao menos
890 habitantes teriam sido assassina-
dos e 16 mil pessoas se refugiaram no
Congo-Brazzaville, segundo o Alto Co-
missariado das Nações Unidas para os
Refugiados (Acnur). Essa mesma preo-
cupação de prevenir um êxodo prove-
niente da RDC existe em Ruanda, que
hospedaria, no final de dezembro de
2018, mais de 79 mil refugiados congo-
leses, chegados em diversas ondas.^4
Nesse jogo, a África do Sul joga
sua própria partida. Ao validar o pro-
cesso eleitoral congolês, ela reafirma
seu vínculo ao princípio da soberania
dos Estados e uma diplomacia hostil
à ingerência de tipo imperialista.
Eleita membro não permanente do
Conselho de Segurança da ONU para
2019-2020, ela contribuiu, em nome
do princípio de não ingerência, com a

sabotagem da reunião organizada
pela França em 4 de janeiro sobre as
eleições na RDC, impedindo a ado-
ção de um comunicado comum. Pre-
tória recebeu o apoio dos dois outros
membros africanos dessa instância
da ONU: a Costa do Marfim e a Guiné
Equatorial.

A ÁFRICA DO SUL SE DEFENDE
Essa atitude não está isenta de um
certo cinismo. O arranjo com Tshise-
kedi mantém em efeito a influência de
Kabila. Durante dezoito anos, o presi-
dente congolês foi um parceiro cômo-
do para a África do Sul. Em 2013, um
tratado internacional concedeu à
companhia sul-africana de eletricida-
de Eskom mais de 2.500 megawatts
provenientes da futura barragem de
Inga III,^5 ou seja, mais da metade de
sua potência. Kabila outorgou a diver-
sas empresas sul-africanas autoriza-
ções petroleiras sem licitação. Uma
delas obteve duas concessões na Bacia
do Congo, invadindo o Parque Nacio-
nal da Salonga. Segundo fornecedor
comercial da RDC, em diversos produ-
tos, depois da China, a África do Sul
protege sua posição. Quase todo o co-
bre e o cobalto congoleses transitam
ainda pelos portos sul-africanos, ape-
sar da concorrência crescente dos cor-
redores de Benguela, em Angola, e de
Walvis Bay, na Namíbia.
Para a União Africana, o desenlace
da novela congolesa é incontestavel-
mente uma afronta. Em 2002, quando
sucedeu à Organização da Unidade
Africana (OUA), criada em 1963, ela
afirmou que “eleições transparentes e
críveis constituem um elemento-cha-
ve que permite a garantia do direito
fundamental e universal do governo
participativo e democrático”.^6 Ela pre-
vê inclusive missões de observação
encarregadas de avaliar a indepen-
dência das comissões eleitorais nacio-
nais, o bom desenrolar das eleições e a
utilização dos fundos públicos. No en-
tanto, na prática, na maioria das situa-

1 Ler “L’Église congolaise contre Kabila” [A Igreja
congolesa contra Kabila], Le Monde Diplomatique,
abr. 2018.
2 Ler Tierno Monénembo, “En Afrique, le retour des
présidents à vie” [Na África, o retorno dos presi-
dentes à vida], Le Monde Diplomatique, dez. 2015.
3 Ler Sabine Cessou, “Transition à haut risque en
République démocratique du Congo” [Transição
de alto risco na República Democrática do Con-
go], Le Monde Diplomatique, dez. 2016.
4 “République du Congo. Les expulsions collectives
de ressortissants de la RDC pourraient constituer
des crimes contre l’humanité” [República do Con-
go. As expulsões coletivas dos cidadãos da RDC
poderiam constituir crimes contra a humanidade],
Amnesty International, 2 jul. 2015.
5 Ler François Misser, La Saga d’Inga. L’histoire des
barrages du fleuve Congo [A saga de Inga. A his-
tória das barragens do Rio Congo], L’Harmattan/
Museu Real da África Central, Paris/Tervuren (Bél-
gica ), 2013.
6 Declaração dos princípios regentes das eleições
democráticas na África, OUA/UA, Durban, 8 jul.
2002.

ções, ela prefere deixar esse papel para
as organizações sub-regionais.
A implicação da União Africana nas
eleições congolesas representa então
uma tentativa inédita (mas abortada)
de resolução da crise, sem dúvida liga-
da à personalidade de seu presidente,
Kagamé. O chefe de Estado ruandês
não é um grande fã de Kabila. Ele o cri-
tica principalmente por acolher os re-
beldes hutus em seu território. Foi sem
dúvida para conseguir seu apreço que
Kabila entregou ao poder de Kigali o
coronel Ignace Nkaka, porta-voz das
Forças Democráticas de Libertação da
Ruanda (FDLR), e o tenente-coronel
Théophile Abega, responsável pelas
informações militares da organização
rebelde, ambos presos em 15 de de-
zembro pelo Exército congolês em Bu-
nagana (Kivu do Norte).
No fim das contas, todo mundo,
tanto na África como fora dela, se aco-
moda com a vitória de um candidato
que provavelmente não conseguiu
mais do que 17% dos votos. Mas será
que a população congolesa vai aceitar
o que Fayulu qualificou como um “gol-
pe eleitoral”?

*François Misser é jornalista.
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