Le Monde Diplomatique - Edição 140 (2019-03)

(Antfer) #1

36 Le Monde Diplomatique Brasil^ M A RÇO 2019


“Quando se parte
do pressuposto
de que você tem um
partido, é preciso
aceitar todos oserros
daquele partido e falar
mal dos outros”

ENTREVISTA


Aos 77 anos, ícone da cultura nacional fala ao Le Monde Diplomatique Brasil sobre momento político do país,
relação com as drogas e religião
POR GUILHERME HENRIQUE*

“Sociedade brasileira é hipócrita e

preconceituosa”, diz Ney Matogrosso

“ N


ão falo de política”, afirmou
Ney Matogrosso ao sentar-se no
sofá de seu amplo apartamento
na zona sul do Rio de Janeiro,
em uma tarde abafada de fevereiro. A
frase saltou da boca do artista como se
fosse um bom-dia, acompanhada por
um semblante amistoso, mas firme.
Vestindo branco da cabeça aos
pés, as pernas cruzadas, cercado por
quadros, Ney Matogrosso não está
preocupado em agradar ninguém.
“Não sou hipócrita”, diz algumas ve-
zes ao longo da conversa. A máxima
de não falar de política acaba rapida-
mente, ao esclarecer que nenhum
partido político lhe interessa e que só
a liberdade vale a pena.
Em seu livro de memórias ( Ney Ma-
togrosso – Vira-lata de raça ), lançado
no fim de 2018, Ney se define como li-
vre e subversivo. Ninguém há de es-
quecer o que ele, João Ricardo e Ger-
son Conrad fizeram no início dos anos
1970, com o Secos & Molhados. “Eu su-
bia no palco querendo trepar com as
pessoas”, relembra. Aos 77 anos e qua-
se meio século de carreira, a forma de
reivindicar mudou: “Quando vejo a
notícia de que 50 milhões de brasilei-
ros estão abaixo da linha da pobreza,
eu canto ‘Tem gente com fome’ no meu
show”, salienta.
O já conhecido estilo provocador e
autêntico ganha força a cada análise. A
sociedade, para ele, vive um período
delicado, na linha tênue entre o temor
e o atraso. “Não quero ser âncora do
medo e não saberia viver desse jeito”,
esbraveja.
Ao vasculhar a própria história,
Ney Matogrosso vai se desvencilhan-
do das camadas que o formam. Fala do
uso de drogas com naturalidade. O
amor e a loucura parecem ter a mesma
importância, sem que nenhum dos te-
mas seja discutido com pudor. “Desde
o começo digo a verdade, sabendo que
não teria rabo para as pessoas pisa-
rem”, ressalta.
Entre memórias e revelações, Ney
Matogrosso faz de sua vida um grande
novelo. Fios longuíssimos estão co-

nectados, ainda que nem todos este-
jam à mostra. O Le Monde Diplomati-
que Brasil foi ao seu encontro para
puxar uma das pontas.

LE MONDE DIPLOMATIQUE BR ASIL

- Há uma frase no seu livro de memó-
rias que diz que “a parte masculina ou
feminina que as pessoas enxergam em
mim é reflexo delas próprias”. Como,
por meio do seu trabalho, é possível fa-
zer uma análise da sociedade?

NEY MATOGROSSO – Sempre achei a
sociedade brasileira muito preconcei-
tuosa e hipócrita. Sempre me coloquei
contra a hipocrisia, assumindo a ver-
dade desde a primeira entrevista que
dei. Não sabia o que dizer, mas tinha a
certeza de não querer viver escondido
como muitos artistas brasileiros vi-
viam à época, ocultos atrás de uma
fachada. Isso não me interessava,
porque seria compactuar com a hipo-
crisia. Desde o começo digo a verda-
de, sabendo que não teria rabo para
as pessoas pisarem. Antes que elas
falem de mim, eu já falei tudo.


Sobre isso de artistas se esconderem,
tenho a impressão de que os artistas de
antigamente se expunham mais, tal-
vez pelo período político. Qual é sua
avaliação do período atual?
Existe uma novíssima geração que
contesta o tempo todo. Não sou uma
pessoa acomodada também. Estou fa-
zendo um show que as pessoas estão
considerando político, mas não há po-
lítica partidária. Quando vejo a notícia
de que 50 milhões de brasileiros estão
abaixo da linha da pobreza, eu canto
“Tem gente com fome”, e isso não sig-
nifica que eu esteja defendendo parti-
do político, porque nenhum deles me
interessa nem nunca me interessa-
ram. Quero ter liberdade para falar de
todas as coisas. Quando se parte do
pressuposto de que você tem um par-
tido, é preciso aceitar todos os erros
daquele partido e falar mal dos outros.
Então prefiro não ser de nenhum par-
tido. Sou um ser humano que pretende
usar a liberdade de expressão.

Como foi aquela situação com o MBL,
em que o Kim Kataguiri tirou uma foto
com você e postou nas redes sociais?
Foi um episódio bobo; tentaram me
usar naquele momento. Mas entrei na
justiça e ele foi obrigado a tirar qual-
quer referência ao meu nome nas redes
dele. Uma bobagem, porque depois de
três ou quatro dias ninguém lembrava
mais. É que ali estava no calor da situa-
ção, e ele se guiou por uma entrevista
que eu tinha dado para um jornal es-
trangeiro sobre ser a favor ou contra o
impeachment da Dilma. Disse que, se
houvesse culpa, ela deveria sair. Mas eu
não torcia pela queda dela, como não
torço pelo mal desse que está aí [Bolso-
naro]. Não sou assim. Posso discordar,
mas respeito o voto das pessoas.

Recentemente, você disse que “não
queria ser âncora do medo ao falar
do Brasil”.
Sim, porque todo mundo estava
apavorado, e eu não quero ter medo.
Nunca tive medo de nada, por que vou
me agarrar no medo neste momento?

Como você se blinda?
É você se colocar mentalmente.
Não tenho medo, e aí? Isso não signifi-
ca que eu esteja imune a nada. Mas eu
não quero ficar nessa energia de te-
mor. Isso é um atraso, péssimo. Não
saberia viver desse jeito.

Mesmo em tempos de ditadura?
Mesmo naquele período. Se eu ti-
vesse medo, não tinha nem mostrado
a cara.

Durante seu documentário, você diz
que é no palco que você se liberta.
Da minha loucura, porque sempre
temi a loucura. Estou falando isso do
Secos & Molhados, que foi um mo-
mento de catarse pra mim. Eu não ti-
nha um rosto, lembre-se disso... Quan-
do deixei de ter um rosto, algo jorrou
de dentro de mim. Enfrentei todo o
medo da loucura que eu tinha.

Da loucura em que sentido?
Vou te dar um exemplo: nas déca-
das de 1950 e 1960, eu andava de ôni-
bus diariamente. Ia pagar para o tro-
cador e ele dizia que não tinha troco.
Antes disso acontecer, eu já imaginava
a seguinte cena: vou entrar no ônibus,
o trocador vai dizer que não tem troco,
e eu me via pendurado no corrimão
enfiando o pé na cara dele, quebrando
tudo. Era muito louco, e eu tinha hor-
ror disso se concretizar.

Aí veio a cara pintada do Secos &
Molhados.
Fui com tudo. Eu era muito agressi-
vo, então talvez precisasse exercitar a
agressividade. Temia a agressividade,
e ela foi exercitada via arte. Acho que
todas as pessoas, em todas as profis-
sões, deveriam praticar qualquer tipo
de arte. A doutora Nise da Silveira sa-
cou isso. Colocar sua loucura para fora
pela arte, ultrapassar os limites e im-
pedimentos das fantasias negativas.

E aí você chega à década de 1980 com
shows mais formais, de terno...
Mas não foi pra limpar a barra, e
sim por uma necessidade de experi-
mentar aquilo.

Mas em que momento, depois do Secos
& Molhados, essa loucura que apare-
cia por meio da arte acabou?
A arte é útil pra mim até hoje. É o que
me realiza como ser humano, e eu não
saberia ser outra coisa senão artista.

Mas não pra exorcizar loucura.
Não pra exorcizar loucura, mas,
naquele momento, foi. Era um mo-
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