Le Monde Diplomatique - Edição 140 (2019-03)

(Antfer) #1

4 Le Monde Diplomatique Brasil^ M A RÇO 2019


© Rodrigo Leão

O LABIRINTO CASTRENSE


Notas para

entender

os militares

brasileiros

na atualidade

Ao dar de ombros a formas menos ortodoxas de compor


um ministério e ao ignorar em larga medida o funcionamento


do “presidencialismo de coalizão” e o mundo da política,


o novo governo lançou uma proposta arriscada e suscitou


na cabeça de muitos a questão “O que pensam os militares


brasileiros hoje? ”


POR ALEXANDRE FUCCILLE*


H


istoricamente, a América Lati-
na tem se caracterizado por ser
uma região onde as relações ci-
vis-militares se desenvolveram
de forma bastante atribulada. No caso
da experiência brasileira, maior país e
economia deste espaço geográfico, is-
so não foi diferente, particularmente
no período republicano, nascido sob o
signo da espada ainda no século XIX.
Foi a partir da Guerra do Paraguai,
também no século XIX, que as Forças
Armadas brasileiras passaram a ter
crescente importância política e mili-
tar. Militar porque as Forças, durante o
conflito, verificaram a necessidade de
dispor de novas técnicas e processos
para que pudessem dar mais eficiência
ao desempenho de suas múltiplas tare-
fas. Passou-se então a perceber a rela-
ção entre a organização militar e o
grau de desenvolvimento econômico
de um país como o nosso, onde eram
tão incipientes as bases da industriali-
zação. Até então, as Forças Armadas
regulares eram vistas como uma remi-
niscência da dominação colonial.
A percepção da importância de
montar uma máquina bélica moderna
passou a estar presente no pensamen-
to militar durante os anos que se se-
guiram à guerra. A partir de então, a
corporação militar assumiu uma pro-
gressiva influência política à medida
que teve uma noção mais crítica de
seu papel como a “mais nacional” das
instituições de um país tão marcado
pelos regionalismos, sem que a mes-


ma contrapartida e preocupação se
desse por parte dos civis.
Passados mais de cem anos, o des-
caso continua, e uma das mais fre-
quentes imagens no senso comum ao
falarmos de Forças Armadas e demo-
cracia no Brasil pós-ditadura militar é
o negligenciamento da questão militar
como um plano resolvido e a quase au-
tomática vinculação entre a institui-
ção militar e sua adesão aos ideários
democráticos. Dada a histórica escassa
produção de estudos sobre os militares
brasileiros e o descaso que a sociedade
nutre pelo tema, é compreensível a
representação e aceitação – embora
ambas perigosas, a nosso ver – do
ideário da questão militar como um
problema que não demandaria maio-
res considerações no contexto pós-
-autoritário por amplos segmentos
da sociedade brasileira.
Em uma breve digressão históri-
ca, salta aos olhos – seja como “prote-
tora” da sociedade e/ou do Estado – a
proeminência militar ao longo de to-
da a sua existência independente, es-
pecialmente no período republicano.
Assim, datas fundamentais da vida
política nacional, como 1889 (Procla-
mação da República), 1893 (Revolta
da Armada), década de 1920 (Tenen-
tismo), Revolução de 1930 (fim da Re-
pública Velha), 1937 (instituição do
Estado Novo), 1945 (deposição de Ge-
túlio Vargas), 1954/55 (suicídio de
Vargas e contragolpe para a garantia
de posse a Juscelino Kubitschek), até

o assalto direto ao poder em 1964 –
apenas para citarmos algumas –, não
podem ser pensadas sem referência
ao aparelho militar.
É evidente que a nova realidade
pós-1985 é substancialmente distinta
da anterior, com a instituição militar
no centro decisório do poder. Não obs-
tante, cabe salientar que o término do
ciclo militar-autoritário brasileiro de-
correu, como sabemos, menos das
pressões de uma forte e articulada so-
ciedade civil exigindo o retorno à nor-
malidade democrática do que do pro-
jeto distensionista elaborado por um
setor das Forças Armadas. De outra
parte, diferentemente de países como
a vizinha Argentina, onde literalmente
houve um colapso do sistema, a transi-
ção no Brasil foi negociada “pelo alto”,
fazendo que isso viesse a se refletir no
futuro modelo de relações civis-milita-
res que temos até os dias de hoje. Ora, o
que estamos querendo dizer com isso?
As duas últimas décadas do século
X X representaram momentos decisi-
vos na trajetória da sociedade brasilei-
ra. O término da Guerra Fria, crises in-
ternacionais sucessivas e o avanço do
processo de globalização/mundiali-
zação determinaram pressões que se
traduziram numa drástica redefinição
da agenda pública, notadamente no
que se refere às características políti-
cas e econômicas do país. “Transição”
e “democratização”, programas de es-
tabilização econômica, reformas neo-
liberais orientadas para o mercado e
integração na ordem internacional
globalizada tornaram-se as novas
prioridades, traduzindo-se numa reo-
rientação das políticas públicas que
seriam postas em prática pelos gover-
nos do período pós-autoritário.
Dadas as peculiaridades e singula-
ridades da profissão militar, ao lado do
forte esprit de corps^1 que a instituição
possui, muitas vezes o controle civil
tem sido dificultado em nome de um
conhecimento tecnocrático exclusivo
que leva os militares a reclamarem au-
tonomia perante qualquer controle ex-
terno. Aqui entra um problema funda-
mental. Por exemplo, mais do que
apenas verificar se um dado país pos-
sui ou não um Ministério da Defesa
(em nosso país, foi criado em 1999, sob

Fernando Henrique Cardoso, com a
extinção do Estado-Maior das Forças
Armadas e a transformação dos anti-
gos ministérios militares em Comando
do Exército, da Marinha e da Aeronáu-
tica), há que estar atento aos moldes
deste, ou seja, que áreas são por ele efe-
tivamente controladas e com civis à
frente. Em outras palavras, quem man-
da e em quais atividades. Nessa dire-
ção, o quadro da nova estrutura insti-
tucional brasileira é desolador, mesmo
após duas décadas de sua criação.^2
Contudo, ao menos desde o gover-
no FHC (1995-2002) temos observado
um maior destaque com respeito aos
temas da caserna, ora com avanços,
ora com recuos e/ou hesitações. Se por
um lado sob FHC tivemos a aprovação
da Lei dos Desaparecidos (importante
passo, mas ainda insuficiente ajuste de
contas com o passado), a publicação de
uma inédita Política de Defesa Nacio-
nal (PDN) em 1996 e a criação do Mi-
nistério da Defesa em 1999 – apenas
para citar os principais acontecimen-
tos –, por outro assistimos a uma peri-
gosa banalização das missões internas
das Forças Armadas (rotineiramente
empregadas em missões típicas de po-
lícia)^3 e a um acentuado processo de
sucateamento de seus meios materiais,
entre outros desatinos.
No governo Lula (2003-2010), por
seu turno, não foi muito diferente. Ao
lado de admiráveis melhorias e inicia-
tivas, como importantes programas
de reaparelhamento e fortalecimento
das Forças (na casa de alguns bilhões
de dólares), recomposição de parcela
importante dos soldos, orçamentos
crescentes, a revisão da PDN e o lan-
çamento da Estratégia Nacional de
Defesa (END), em 2008, bem como o
estabelecimento de parcerias estraté-
gicas com outras nações e a iniciativa
de criação do Conselho de Defesa Sul-
-Americano (CDS), tivemos episódios
lamentáveis, como a saída do minis-
tro José Viegas Filho (em vez da de-
missão do saudosista comandante do
Exército como seria o correto naquele
episódio), um descaso com o fortale-
cimento da direção política civil sobre
os militares que se refletiu na nomea-
ção para a pasta de nomes absoluta-
mente sem nenhuma familiaridade
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