Le Monde Diplomatique - Edição 140 (2019-03)

(Antfer) #1

MARÇO 2019 Le Monde Diplomatique Brasil 5


nem – ainda mais grave – desejo de co-
nhecer a temática (José Alencar e Wal-
dir Pires), emprego das tropas em
questões de segurança pública em du-
ração muito maior do que a desejável,
e assim por diante.
Já o primeiro governo Dilma Rous-
seff (2011-2014), por sua vez, a despeito
de ter tido na maior parte do tempo co-
mo ministro da Defesa o notável ex-
-chanceler Celso Amorim, foi frus-
trante sob vários aspectos ao não fazer
avançar a agenda herdada de seu ante-
cessor e padrinho político e levando-
-se em conta o histórico de vida pes-
soal da própria chefe de Estado e o que
ela sofreu nos porões da ditadura mili-
tar. Do lado da sociedade civil, tam-
pouco assistimos a qualquer tipo de
pressão para a publicização e aprofun-
damento de uma agenda que contem-
plasse a questão do controle civil de-
mocrático sobre os militares, mesmo
após a criação em 2011 da Comissão
Nacional da Verdade (CNV), que inco-
modou profundamente os militares.
Antes, pelo contrário, continuamos a
assistir a um lamentável crescente em-
prego das Forças Armadas em ques-
tões de segurança pública. Em seu se-
gundo mandato (2015-maio/2016), já
de início conflagrado por uma oposi-
ção golpista que não aceitava a derrota
nas urnas, mais do mesmo. Todavia,
apesar do perfil discreto dos militares
ao longo do chamado processo de im-
peachment – o que não deve ser con-
fundido como ausência de consulta a
esses atores fardados, seja pela direita,
seja pela esquerda –, maio de 2016 assi-
nalaria um ponto de inflexão. Nesse
mês, em uma “RESOLUÇÃO SOBRE
CONJUNTUR A” do Diretório Nacional
do Partido dos Trabalhadores, menos
de uma semana após o golpe e apea-
mento da Presidência da República da
primeira mandatária de nossa histó-
ria, num tardio e extemporâneo mea
culpa
dos treze anos de governo, lía-
mos que “Fomos igualmente descui-
dados com a necessidade de [...] modi-
ficar os currículos das academias
militares; promover oficiais com com-
promisso democrático e nacionalis-
t a”.^4 Apesar do diagnóstico correto,
que muitos especialistas civis da área
alertavam fazia tempo, estava dada a
senha para o divórcio definitivo entre
as Forças Armadas e o PT. A partir de
então, com um governo impopular e
de legitimidade contestada como o de
Michel Temer, veríamos a influência
militar crescer significativamente.
Sob o governo Temer (2016-2018),
os pontos altos seriam a recriação do
Gabinete de Segurança Institucional
(GSI) – com status ministerial, muito
mais fortalecido que a estrutura ante-
rior (em especial na área de inteligên-
cia) e sob a direção do prestigiado e in-
fluente general Sérgio Etchegoyen –, a
revisão dos documentos de alto nível


político atinentes à Defesa (Política
Nacional de Defesa, Estratégia Nacio-
nal de Defesa e Livro Branco de Defesa
Nacional),^5 a intervenção federal no
estado do Rio de Janeiro sob liderança
militar de fevereiro a dezembro de
2018 e o orçamento e execução orça-
mentária num contexto de forte restri-
ção fiscal e vigência da “PEC do Teto
dos Gastos” na Defesa e nas três Forças
de causar inveja aos reles ministérios
civis (com seus custeios e investimen-
tos fortemente contingenciados). Ou
seja, a fatura estava sendo régia e rigo-
rosamente paga em dia.
Enfim, chegamos a 2018, ano de
eleições presidenciais e data que não
deixará melhores lembranças aos de-
mocratas e às forças progressistas. A
preocupação central por parte da cor-
poração militar foi, mais do que qual-
quer coisa, impedir a vitória de um
candidato petista (fosse ele o ex-presi-
dente Lula ou aquele que o acabou su-
cedendo na chapa presidencial, Fer-
nando Haddad). Dos militares,
sempre off the record , era comum ou-
vir que, em um eventual novo governo
do PT, eles voltariam com “sangue nos
olhos”, endossando um sentimento
manifestado anteriormente pelo en-
tão comandante do Exército, o general
Villas Bôas, e outros colegas de gene-
ralato.^6 E assim eles agiram, seja por
meio da famosa postagem do Twitter
de 3 de abril de 2018, lida ao final do
Jornal Nacional , a qual veladamente
ameaçava as instituições na véspera
do julgamento do habeas corpus do
ex-presidente Lula pelo Supremo Tri-
bunal Federal (STF),^7 seja no desem-
barque maciço na candidatura à Pre-
sidência do capitão reformado do
Exército Jair Messias Bolsonaro.^8
Em um processo eleitoral sui gene-
ris , marcado pelas fake news , pelo anti-
petismo exacerbado e pela ausência de
um debate amplo com a sociedade,
combinado a um atentado repudiável
que blindou e humanizou o “capitão”,
gerando-lhe enorme espaço de mídia
positiva (em vez dos oito segundos de
que dispunha em rádio e TV), Bolso-
naro – com seu vice, o general Hamil-
ton Mourão – sairia vencedor em outu-
bro de 2018.
De lá para cá, o anúncio da compo-
sição de seu governo, com uma pro-
porção de militares no primeiro esca-
lão considerada inédita mesmo
levando em conta o período da ditadu-
ra militar e um entorno palaciano cuja
única figura civil a ocupar um cargo
de primeiro escalão é o cambaleante
ministro-chefe da Casa Civil, Onyx Lo-
renzoni,^9 surpreendeu mesmo os mais
céticos. Ao dar de ombros a formas
menos ortodoxas de compor um mi-
nistério e ao ignorar em larga medida
o funcionamento do “presidencialis-
mo de coalizão”^10 e o mundo da políti-
ca, o novo governo lançou uma pro-

posta arriscada e suscitou na cabeça
de muitos a questão “O que pensam os
militares brasileiros hoje?”.
Quando olhamos retrospectiva-
mente, podemos perceber que, mais
de meio século após o golpe que levou
os militares diretamente ao centro do
poder decisório, esses atores hoje são
distintos. Fim da Guerra Fria, intensi-
ficação da globalização/mundializa-
ção acompanhada de desregulamen-
tação financeira, entre outros atributos
da atual era, parecem ter deixado no
passado a ideia de “projeto nacional”
tradicionalmente tão cara aos milita-
res e/ou à defesa do Estado como indu-
tor do desenvolvimento. Outro ponto a
destacar é que, distintamente do que
assistimos até o golpe de 1964, em que
claramente tínhamos no interior das
Forças Armadas brasileiras uma dis-
puta entre “progressistas” versus “con-
servadores”, ou “nacionalistas” versus
“entreguistas”, o expurgo subsequen-
te^11 e o controle férreo sobre o processo
educativo não deixaram espaços para
voltarmos a ter um “Almirante Negro”
como João Cândido, um “Cavaleiro da
Esperança” como o capitão Luís Car-
los Prestes, um marxista da cepa do
general Nelson Werneck Sodré, entre
outros. Os militares atuais, notada-
mente do Exército, que têm tomado a
liderança desse processo, são oficiais
brancos, católicos e de orientação libe-
ral, que veem pouco espaço para um
protagonismo internacional maior por
parte do país e parecem aquiescer
com uma inserção subordinada no sis-
tema internacional, a despeito de juras
de amor eterno à nação e frases de
efeito como “Brasil acima de tudo”.^12
Nessa direção, em um governo
com ministros civis extremistas e tres-
loucados, que carece de direção políti-
ca, mas tem uma forte âncora no pilar
econômico ultraliberal capitaneado
pelo Chicago boy Paulo Guedes, os mi-
litares parecem jogar um papel de “po-
der moderador” e ofertar alguma pre-
visibilidade às ações futuras de um
chefe do Executivo visto como despre-
parado, de arroubos autoritários e sob
forte influência de um entourage fami-
liar perigoso. Nessa complexa equação
e simbiótica relação, na qual Bolsona-
ro usou o Exército e tem sido usado por
ele, os militares estão de volta, agora
pela força do voto. A possibilidade de
reescrever a história – em que se veem
maculados pelo que chamam de “re-
vanchismo”, que insistiria que houve
golpe, ditadura, tortura e desapareci-
dos políticos, em vez de lhes agradece-
rem por terem impedido o Brasil de
transformar-se numa “grande Cuba”
–, garantir vultosos recursos aos pro-
gramas estratégicos das Forças e pre-
servar seus privilégios (como prerro-
gativas não condizentes com uma
democracia madura – por exemplo,
grande autonomia na atuação de seus

serviços de inteligência –, além de suas
precoces e generosas pensões) anima
esses atores e está no centro dessa de-
cisão de participar de um governo de
extrema direita militarizado, num fe-
nômeno que lembra, mas é distinto do
que foi a tutela militar vivida no gover-
no José Sarney (o primeiro civil após
21 anos de ditadura militar).^13
A tentativa, por meios indiretos, de
acabar com Lei de Acesso à Informa-
ção por Mourão quando esteve à fren-
te do exercício da Presidência em ja-
neiro último, permitindo a extensão
de uma cultura de sigilo injustificável
que ampliaria a funcionários comis-
sionados e de segundo escalão o poder
de impor sigilo a documentos públi-
cos, mostra que eles não estão para
brincadeira.^14 Contudo, as cabeças
oriundas da caserna – cartesianas por
natureza e muitas vezes voluntaristas


  • terão dificuldades em moldar-se ao
    universo da política, um terreno mo-
    vediço, plural, e de ética e gramática
    substantivamente distintas da militar.
    Os primeiros resultados da interação
    Executivo-Legislativo têm sido prolífi-
    cos nesse sentido.
    Enfim, toda a participação militar
    no governo Bolsonaro (além dos mi-
    nistros já citados, cerca de uma cente-
    na de pessoas com boa formação téc-
    nica e origem nas Forças Armadas
    ocupando cargos de direção e assesso-
    ramento superior) é uma aposta arris-
    cada, e, ciosos dos riscos que correm e
    do pensamento estratégico que orien-
    ta suas atividades profissionais ao lon-
    go de uma vida, esses atores fardados
    não parecem dispostos a comprome-
    ter a alta credibilidade de que goza o
    aparelho militar junto à opinião púbi-
    ca. A despeito da gratidão explicitada
    na transmissão de cargo de ministro
    da Defesa, em 2 de janeiro, quando
    Bolsonaro afirmou ao general Villas
    Bôas que “o que já conversamos mor-
    rerá entre nós. O senhor é um dos res-
    ponsáveis por eu estar aqui”, e recebeu
    como resposta um sorriso e aceno de
    cabeça do seu hoje subordinado que
    despacha no GSI (comandado pelo ge-
    neral Augusto Heleno), esse não pare-
    ce ser um pacto de sangue. Mais ain-
    da: o backup em caso de um eventual
    impedimento do presidente Jair Bolso-
    naro, com a posse do general Mou-
    rão,^15 sairia muito mais ao gosto da alta
    oficialidade agora tendo um dos seus
    no comando direto da República.
    Ao mesmo tempo, nem o Exército
    nem as Forças Armadas são institui-
    ções monolíticas. Concretamente, ain-
    da é muito cedo e difuso o cenário para
    definir o papel que caberá aos militares
    na condução do atual governo, recor-
    dando que o Estado é um complexo
    aparelho burocrático e normativo, com
    uma não desprezível rigidez e inércia
    quanto a novos processos e composto
    de três poderes (Executivo, Legislativo

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