Le Monde Diplomatique - Edição 140 (2019-03)

(Antfer) #1

MARÇO 2019 Le Monde Diplomatique Brasil 7


Enquanto o limite,
o escopo e os métodos de
atuação dos espiões não
forem claramente
definidos, haverá uma
névoa invisível perigosa
à democracia

A


subordinação dos militares ao
poder civil é unanimidade nos
estudos acadêmicos sobre rela-
cionamento civil-militar em re-
gimes democráticos. Não há democra-
cia sólida se os militares não aceitarem
e serem comandados de fato por um
poder civil. A lógica é que as institui-
ções civis, ao representarem o desejo
popular, definem a política a ser segui-
da. Aos militares, cabe o papel de exe-
cutar essas políticas, sejam elas quais
forem. Esse balanço é o que garante o
equilíbrio dos que controlam a estabi-
lidade constitucional e a soberania
nas democracias.
Esse equilíbrio jamais ocorreu no
Brasil – e agora se distancia ainda mais
com a quantidade de militares ocu-
pando cargos-chave no governo de Jair
Bolsonaro. Nossos militares – original-
mente a elite colonial e, posteriormen-
te, imperial – sempre foram agentes
políticos domésticos com forte engaja-
mento, atuando como garantidores do
status quo político. Ainda que essas
ameaças não fossem assim tão claras, a
percepção de “estabilidade nacional”
vinda dos quartéis prevaleceu no pro-
cesso de independência de Portugal,
na proclamação da República, na im-
plantação e desmonte do Estado Novo
e no regime militar de 1964-1985, para
citar apenas os principais envolvimen-
tos diretos na política doméstica.
Parece haver uma percepção de
que existe um despreparo dos civis pa-
ra a condução dos temas ligados à de-
fesa nacional, o que demandaria uma
“tutela” dessas questões pelos milita-
res até que os civis, de fato, se mostras-
sem preparados. O problema é que es-
se momento parece nunca chegar – e
não é por falta de preparo dos civis.
Um dos exemplos disso é o Sistema
Brasileiro de Inteligência (Sisbin), que
reúne os órgãos federais de (contra)es-
pionagem. Ainda que hoje, por decreto
de 2018, o Sisbin seja composto por 39
órgãos federais, o principal deles é a
Agência Brasileira de Inteligência (Abin),
herdeira direta do Serviço Nacional de
Informações (SNI), do regime militar.
Criado em 1964, imediatamente
após o golpe que depôs João Goulart, o
SNI sobreviveu até depois do fim do
regime. O órgão da ditadura foi dissol-


OS SERVIÇOS DE INTELIGÊNCIA E A (IN)SUBORDINAÇÃO DOS MILITARES AO PODER CIVIL NO BRASIL


Somente para meus olhos

Há uma dificuldade institucional e corporativa das Forças Armadas no Brasil em compreender e aceitar


a subordinação ao poder civil. Isso se reflete no histórico engajamento político de militares e na relutância em conectar


os serviços de inteligência do país aos três poderes, o que enfraquece nossas experiências democráticas


POR LUCAS PEREIRA REZENDE*


vido apenas por Fernando Collor, que
criou a Secretaria de Assuntos Estraté-
gicos (SAE). A Abin foi institucionali-
zada apenas em 1999, pelo governo
Fernando Henrique Cardoso, no mes-
mo ano de criação do Ministério da
Defesa. Nova no nome, mas velha nas
práticas e no obscurecimento.
Não que se espere que um serviço
secreto seja absolutamente transpa-
rente, o que seria um contrassenso à
sua atividade fundamental. O estabe-
lecimento da Política Nacional de Inte-
ligência, em 2016, da Estratégia Nacio-
nal de Inteligência, em 2017, e do Plano
Nacional de Inteligência, em 2018, são
passos importantes para a transparên-
cia das agências do Sisbin. Mas não são
suficientes, em especial pela ausência
de controle e supervisão dos serviços
de inteligência das Forças Armadas.
A falta de subordinação ao poder ci-
vil nesse campo é vista em elementos
concretos, tais como ausência de su-
pervisão dos gastos, de um marco legal
de operação e limites das agências, de
um controle contínuo e de uma presta-
ção de contas aos poderes Legislativo e
Judiciário. A Abin coleta as informa-
ções e as entrega ao Executivo federal,
hoje, pelo Gabinete de Segurança Ins-
titucional (GSI). Mas as informações
ali chegam prontas, sem ciência de co-
mo foram coletadas – e o mais agra-
vante: já previamente filtradas.
As agências de inteligência brasilei-
ras ainda parecem seguir a mesma po-
lítica conduzida pelas Forças Armadas
para o Ministério da Defesa: isolar e
manter o controle. Apesar de todo o or-
ganograma, o ministério é ainda fraco
institucionalmente e atua apenas nos
espaços deixados pelos comandos in-
dependentes das três Forças. Exemplo
disso é a incapacidade, mesmo já com
duas décadas de existência, de contro-
lar o orçamento do Exército, da Mari-
nha e da Aeronáutica, que seguem ope-
rando independentemente uns dos
outros, em larga medida.
Essa liberdade dos serviços secretos
é problemática porque a desconexão
entre a prática de coleta de informações
e o propósito político para uso delas as
torna inócuas ou, pior, objeto de mani-
pulação do poder. Não tendo ainda saí-
do do espírito estabelecido pelo SNI e

sem uma clara definição e controle de
alvos e coletas de dados, nossos espiões
podem estar se dedicando muito mais à
caça de “subversivos” (termo usado du-
rante o regime militar para denominar
todos os opositores domésticos ao go-
verno) do que a agentes ligados ao crime
organizado, por exemplo. Enquanto o
limite, o escopo e os métodos de atua-
ção dos espiões não forem claramente
definidos, haverá uma névoa invisível
perigosa à democracia.
Há alguns anos, em fóruns anôni-
mos na internet, nossos arapongas
reclamavam da precariedade institu-
cional, da falta de propósito e do sau-
dosismo dos anos da ditadura que
imperava na Abin. De lá para cá, mu-
dou-se a ave mascote para o carcará.
Novo bico, velhas penas.

A ausência de um claro controle ci-
vil no Ministério da Defesa e nas agên-
cias de inteligência reflete a inquietu-
de da caserna brasileira em aceitar
esse comando. Se o respeito à hierar-
quia é um dos princípios fundamen-
tais da formação e atuação militar, es-
se respeito, em tempos recentes, tem
parado no generalato, não chegando
ao comandante em chefe e, por vezes,
nem mesmo aos próprios comandos
das Forças. Isso sem falar no ministro
da Defesa, que, com raras exceções,
tem papel esvaziado e pouco expressi-
vo no comando dos militares.
Exemplos de insubordinação não
faltam nos anos recentes, sejam de al-
ta ou de baixa patentes. O maior deles
é do próprio vice-presidente da Repú-
blica. Enquanto ainda estava na ativa,
em 2015, o general Hamilton Mourão
foi demitido do Comando Militar do
Sul pelo então comandante do Exérci-

to, general Eduardo Villas Bôas, em ra-
zão de declarações que fez chamando,
entre outras coisas, de incompetente a
então presidenta da República e co-
mandante em chefe das Forças Arma-
das, Dilma Rousseff. Em 2017, o mes-
mo Mourão foi novamente desligado
do cargo de secretário de Economia e
Finanças do Comando do Exército por
declarações sobre o “balcão de negó-
cios” do presidente Michel Temer, seu
superior constitucional máximo.
À época, as reprimendas às insu-
bordinações de Mourão foram critica-
das por serem muito brandas, ao que
Villas Bôas respondeu que não deseja-
va criar um mártir. Não foi preciso
criá-lo, pois o palco político de Mourão
o levou (por ora) à Vice-Presidência da
República. A mensagem passada à so-
ciedade não poderia ser mais clara: a
insubordinação militar e a atuação po-
lítica na caserna são não apenas tolera-
das, como também compensam. Não é
à toa que Mourão demonstrou tanto
interesse em mudar a Constituição Fe-
deral, que proíbe a atuação política de
militares da ativa e os obriga a respei-
tar a hierarquia de comando, hierar-
quia essa que deve ter obrigatoriamen-
te, no posto máximo do Executivo
Federal – e, portanto, comandante em
chefe das Forças Armadas –, um civil.
O princípio da subordinação dos
militares ao poder civil não quer dizer
que os civis sejam melhores que os mi-
litares, e sim o oposto: que os militares
não são, per se , melhores que os civis.
Essa é a mensagem urgente que deve
ser compreendida tanto pela caserna
quanto pela sociedade civil se deseja-
mos recompor um regime democráti-
co sólido em nosso país. E, se esse é o
desejo, a desmilitarização dos serviços
secretos brasileiros e a retirada de sua
névoa antidemocrática parecem ficar
agora mais distantes com o retorno
dos militares ao poder e da militariza-
ção da política no Brasil.

*Lucas Pereira Rezende é doutor em
Ciência Política e professor de Relações In-
ternacionais da Universidade Federal de
Santa Catarina (UFSC). É autor de Sobe e
desce: explicando a cooperação em defesa
na América do Sul, Editora Universidade de
Brasília, 2015.
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