Sabor Club - Edição 37 (2020-02)

(Antfer) #1

42 | Sabor. club [ ed. 37 ]


Se a vida do cozinheiro João Batista Barbosa fosse um
filme, ele surgiria no prólogo cortando a paisagem
encrespada do agreste paraibano a galope. Quem
sabe um roteiro em formato de cordel, com rimas de
humor e aventura. Algo como O Vaqueiro Arretado
na Caçarola do Francês. Exagero? Pois vamos à cena
da inauguração do restaurante Claude Troisgros, em
1982 (que viria a se transformar no Olympe): salão
arumado, convidados de taças cheias, e um gato no
telhado se insinuou pelo buraco de um lustre que não
havia chegado. “Batiiiste!”, chamou o chef, recorrendo
a seu recém-promovido cozinheiro, agora responsável
pelos pratos frios.
“Eu era magrinho igual ao gato e subi no telhado”,
conta Batista, que depois de levar alguns dribles do
felino resolveu pular sobre ele. E assim foi: “O gesso
cedeu e caí com o bicho no meio do salão”. Pior: em

cima da mesa redonda, entre os poderosos da Globo
Boni e Armando Nogueira. Ninguém se machucou,
talvez por um milagre tardio do Padre Cícero.
“Ficaram a noite toda me chamando no salão para
rir”, recorda o cozinheiro que tem 38 anos de histórias
ao lado de Claude Troisgros, e uma intimidade que é
para poucos com nosso mais famoso chef francês.
“Só não considero meu pai porque ele não tem
idade, mas digo que o Claude é um irmão francês que
eu ganhei. A amizade vai muito além de relação de
empregado e patrão. Ele é responsável por tudo
o que eu sou.”
E filosofa, sobre as razões da sintonia: “Eu acho
que o sangue do paraibano e o do francês são iguais.
Os dois são quentes. Minha safra de nordestinos é de
gente forte e trabalhadora, e ele é assim também”.
Pois se o gato pregou a peça no cabra que
começou lavando prato, e terminou como braço-

direito na direção das cozinhas do grupo CT, o boi ele
agarra pelo rabo desde a adolescência nos pastos de
Gurinhém, município de 14 mil habitantes na Paraíba.
Batista é apaixonado por cavalos e até participa
de vaquejadas, embora tenha aproveitado outras
lembranças de sua terra na profissão que abraçou: as
lavouras do avô e os aromas do fogão de lenha da avó
Corina, a quem ajudava atrás de uns trocados para o
bate-coxa no forró.
“Foi meu primeiro contato com a cozinha. Eu
cortava o alho e a cebola para ela temperar o pernil,
com sal e vinagre. Assava no fogão de lenha e ficava
de noite no tacho, coberto com folha de bananeira,
confitando”, lembra, usando um termo culinário que,
na época, jamais poderia desconfiar da existência.
Por outro lado, a intimidade do nordestino com
ingredientes como aipim, jiló, maxixe, batata doce

e quiabo contribuiu de forma acentuada para a face
brasileira da culinária de Claude, que empregou o
paraibano em 1981.
Aos 17 anos, Batista estava de passagem no Rio
para tentar a sorte. Fez bicos como estoquista e
ajudante de pedreiro, até seguir a dica de um tio,
porteiro na região, e bater na porta do Roanne, o
pequeno restaurante onde Claude começava sua
carreira com um fogão caseiro e uma geladeira usados.
“Não entendia o que o chef falava, mas a mulher
dele ajudava e entrei para lavar as louças. Comecei a
me interessar pela comida, ficava impressionado com
a forma com que os ingredientes se transformavam
quando chegavam no prato”, lembra.
Não demorou para o Batista ser convocado a cortar
legumes de um jeito bem diferente daqueles do pernil
da avó, e começar seu aprendizado pelas juliennes e
brunoises que o acompanhariam pela vida afora.

“Eu acho que o sangue do paraibano e o do francês são iguais. Os dois são quentes.
Minha safra de nordestinos é de gente forte e trabalhadora, e ele é assim também”
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