National Geographic - Portugal - Edição 227 (2020-02)

(Antfer) #1

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JOYCELYNDAVIS,descendentede Charlie Lewis,
cativodoClotilda, vivepertodocruzamento das
avenidasTimothye Meaher.Diz ser provável já
tervistomembrosdafamíliaMeaher no super-
mercadoouterestadoa seulado numa fila à
esperadeumcafé.Nuncafalou com nenhum
deles,masjápensounoqueperguntaria aos
Meahersetivesseoportunidade.
“Seelespudessemapenassentar-se e contar-
-nosa históriaquelhesfoicontada, porque tem
dehaverumahistória”,diz.Joycelyn também
pensouemcontactarosdescendentes de Foster,
oudaspessoasdoBenincujosantepassados ven-
deramosseusantepassadosaos traficantes de
escravos.“Oassuntoé muitomais importante do
queumavingança”,afirma.“Émuito mais impor-
tantedoqueganhardinheiro.”
Essetipodeligação,emqueos descendentes
das mais terríveis divisõesraciais da história
dosEUAalcançarama reconciliação, é possível.
Em2009,osdescendentesdeHomer Plessy e
dojuizJohnHowardFerguson,homónimos do
tristementecélebreprocessojudicial que levou
o SupremoTribunaldosEUAa apoiar a segre-
gaçãoracialem1896,constituíram uma funda-
çãoparaexplicarasrepercussões do caso e a sua
relevâncianostemposmodernos. Uma trineta
dojuiz,PhoebeFerguson,reuniu-se com Keith
Plessy,cujobisavôeraprimode Homer Plessy,
poucodepoisdesabero papelque a sua família
representaranahistória.
“Fiqueiperplexaaopercebero poder do sim-
bolismodonossoencontro,sem fazermos nada
paraalémdesermosamigasuma da outra”, afir-
maPhoebe.“Eusabiaquea culpa não era mi-
nha,maserao legadodaminha família. Viver-
mosnoséculoXXInãopodeservir de desculpa
paranadafazermosacercadoassunto.”
Tudocomeçaporassumirosfactos. “Somos
responsáveisporemendarascoisas no tempo
presente”,afirmaKeithPlessy.Os afro-america-
nosforam“malrecebidosaqui,obrigados a tra-
balhar,torturados,assassinados e tudo o mais.
Tudoissonosfoifeito”.Operdão, afirma, co-
meçapeloreconhecimentodesses erros e pelo
pedidodedesculpaporeles. j

ASSUMIR O PASSADO


EPÍLOGO

TEXTO DE CHELSEA BRASTED

ROBERT MEAHER ouviu as histórias de como o
seu bisavô, Timothy Meaher, planeou o derra-
deiro desembarque de escravos nas costas dos
EUA, e da maneira como o navio, o Clotilda, foi
desmantelado perto de Mobile. No entanto, ques-
tiona que os destroços encontrados nas águas
lamacentas do rio Mobile sejam os desse navio,
recordando achados ocorridos em décadas ante-
riores. Sublinha que o seu antepassado nunca foi
condenado por qualquer crime e aponta para o
envolvimento de outras entidades, como as pes-
soas do Benin que venderam os escravos, e
William Foster, que comandou o navio.
“A escravatura está errada, mas se o seu ir-
mão matar alguém, a culpa não é sua”, afirma
Robert Meaher, lembrando que os pecados dos
antepassados não são herdados. Ainda assim,
consegue dizer: “Peço desculpa. Fazer uma coi-
sa daquelas é errado.”
Único membro da sua família a responder a
pedidos de entrevista, Robert afirma que tem
conduzido a sua própria investigação sobre o
Clotilda, reunindo pormenores sobre o navio
e a sua carga. Guarda um artigo sobre Cudjo
Lewis publicado no “Mobile Register” em 1931,
sublinhando uma citação na qual Lewis afir-
mou: “Vendo bem, estou feliz por me encontrar
aqui, porque, quando estava lá, não sabia que
havia um Deus.”
Para Meaher, homem religioso, isto não é irre-
levante. A ligação da sua família à história, diz,
levou-os a doar bens da igreja em Africatown e
um terreno para um parque. Também fez dona-
tivos a uma organização sem fins lucrativos que
envia navios-hospital a todo o mundo, incluin-
do o Benin.
Com 73 anos, Robert Meaher explica que já
não está ligado à gestão do património imobi-
liário da família há cerca de duas décadas e, por
isso, não pode comentar quaisquer planos para
os terrenos que esta possui em Africatown e
nos arredores do bairro. Quando lhe perguntá-
mos se estaria interessado numa reunião com
descendentes das pessoas que vinham a bordo
do Clotilda em 1860, Robert respondeu com cla-
reza: “Não estou disponível para isso.”

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