O Estado de São Paulo (2020-03-12)

(Antfer) #1

VERISSIMO


A


conteceu recentemente no


Brasil de Bolsonaro & Fi-


lhos. Na cerimônia de for-


matura de um curso de jornalis-


mo, o paraninfo da turma, escolhi-


do por votação pelos formandos,


discursava sobre o que esperava


os futuros jornalistas num mercado


de trabalho minguante e condiciona-


do por repetidos ataques do governo


à imprensa, além da ameaça latente


de uma volta da censura explícita e


de novos limites à liberdade de ex-


pressão – como houve em outros tem-


pos, quando outros generais ocupa-


vam o Planalto.


O discurso começou a ser inter-


rompido por vaias e insultos ao para-


ninfo vindos da plateia, e só pôde ser


concluído porque alunos e professo-


res se postaram solidariamente ao la-


do do púlpito do palestrante, enfren-


tando os protestos. Que continua-


ram, tanto que o paraninfo saiu do


palco escoltado por seguranças da


universidade, a imagem inédita e tris-


te de um caos nutrido pela irraciona-


lidade, num ambiente que deveria


ser, no mínimo, de orgulho familial,


apesar das diferenças.


Supõe-se que a maioria da plateia


era formada por pais dos alunos, e


que o paraninfo representava o pensa-


mento da maioria dos alunos. O que


se viu foi um autêntico conflito de


gerações a céu aberto, a ser resolvido,


ou agravado, em casa. Em tempos me-


nos conflagrados a insatisfação da


plateia não chegaria a vaias e insul-


tos. Hoje, críticas ao governo são rece-


bidas com uma intolerância que, cada


vez mais, se concentra numa impren-


sa livre e investigativa, quando não


em filhos e filhas independentes que


não pensam como os pais. Este caos


parece irreversível.


Com tantos generais convivendo


no Planalto, pode-se imaginar que o


melhor lugar para saber os rumos


da nação seja a máquina do cafezi-


nho, onde todos se encontram.


Mas é difícil saber o que pensam os


generais sobre a vida, o amor, a eco-


nomia e o capitão que os comanda.


Às vezes nem eles sabem o que pen-


sam. O general Augusto Heleno,


por exemplo, disse que o Congres-


so chantageia o Executivo e logo


em seguida disse que ninguém na


roda do cafezinho pensa em acabar


com a democracia, nem que seja só


pelo prazer de prender o Maia, e


que os militares só interviriam, co-


mo sempre, em caso de caos. Mas


general, o caos já não está aí?


LUIS FERNANDO VERISSIMO ESCREVE
ÀS QUINTAS-FEIRAS E AOS DOMINGOS

Guilherme Sobota


Muito de Technoboss – uma co-


média de tons absurdos do dire-


tor português João Nicolau,


com estreia nesta quinta-feira,


12 – é sobre a ausência de comi-


seração que o filme direciona


para seu personagem principal,


Luís Rovisco (a estreia de Mi-


guel Lobo Antunes, 70 anos, no


cinema). Divorciado e à beira


da aposentadoria (ou da refor-


ma, como dizem os portugue-


ses), Rovisco poderia ser um


personagem melancólico, mas


o roteiro e a direção incluem na


sua história tantos elementos


únicos que o filme se transfor-


ma em uma crônica de amor e


compaixão.


O filme estreou em 2019 no


Festival de Locarno, na competi-


ção oficial, passou pelo DocLis-


boa, pela Mostra Internacional


de Cinema de São Paulo, pelo


Festival de Sevilha, onde ven-


ceu o prêmio do Júri, e pelo 21.º


Festival do Rio. A distribuição


no Brasil é da Vitrine Filmes.


Com dificuldades para lem-


brar-se de entregar relatórios


da empresa para a qual traba-


lhou a vida toda (uma fictícia


SegurVale – Sistemas Integra-


dos de Controle de Circula-


ção), Rovisco dirige (conduz)


entre regiões de Portugal, can-


tando canções do heavy metal à


salsa espanhola, ao volante ou


não. Um clima de musical se ins-


tala, mas o humor natural de Lo-


bo Antunes (jurista e produtor


cultural aposentado, aqui em


seu primeiro filme e sua primei-


ra atuação na vida) se mistura


ao do personagem, nunca retra-


tado como um pobre coitado.


Outros elementos dão forma


ao filme: Rovisco sofre com a


morte de seu gato companhei-


ro, Napoleão, se complica com


avanços tecnológicos diversos,


lida com uma dor no joelho e


com um filho com casamento


confuso, mas também encon-


tra afeto com o neto e com o


chefe amigo, o britânico Peter


Vale (que nunca aparece na te-


la, embora esteja em diversas ce-


nas do filme). Mas sua missão é


mesmo alcançar Lucinda (Luí-


sa Cruz), recepcionista de um


hotel que ele atende com fre-


quência, um amor de anos atrás


perdido no tempo e que agora


ele fará de tudo para recuperar.


Lobo Antunes (irmão de An-


tonio, o célebre escritor) tam-


bém se aposentou recentemen-


te, em 2017, e foi depois de o


diretor João Nicolau vê-lo dan-


çar em uma festa que o convite


para participar do casting che-


gou. “Quando estava no proces-


so de casting, incluímos muitos


atores profissionais e cantores,


mas eu não estava totalmente


satisfeito”, explica o diretor,


por telefone. Amigo e colega do


filho de Lobo Antunes, testemu-


nhou Miguel em uma festa, e a


cena dele dançando ficou em


sua cabeça. “Foi mais uma ima-


gem, não consigo nem traduzir


em palavras”, diz o diretor.


“Procurei buscá-la em alguns


momentos do filme. Era como


um copo na mão a gingar-se um


bocadinho, e a maneira que


olhava”, arriscou.


Em São Paulo para apresen-


tar o filme na Mostra, em outu-


bro, o ator novato demonstrou


na vida real simpatia similar à


do personagem, embora seja


menos carrancudo.


“Foi muito difícil, mas esse fil-


me salvou a minha vida”, disse.


“Não tinha experiência nenhu-


ma de ator. Mas João é muito


amigo de meu filho e eu gosto


muito dos filmes dele. Ele é


quem arriscava mais, porque se


o ator fizesse um mau papel, o


filme vinha para debaixo.”


Para o diretor, uma das preo-


cupações foi justamente evitar


o olhar de “comiseração” para


um homem mais velho. “Quis


situar o filme no presente do


personagem”, explica. “Diga-


mos que a trama principal é o


que ele está vivendo, não é um


retrato sobre envelhecimento,


é claro que isso está lá também,


mas há outros elementos: vida


doméstica, vida amorosa, uma


vida interior que mostra que


não está bem com ele próprio.”


A ideia era, portanto, obser-


var: “Para mim, mais do que fa-


zer ressaltar alguma característi-


ca da idade, me interessava co-


mo aquele personagem específi-


co reagia àquelas situações. Fo-


mos descobrindo no trabalho.”


As primeiras resenhas do fil-


me na imprensa europeia co-


mentaram semelhanças no hu-


mor do personagem com as


atuações de Jacques Tati


(1907-1982), mímico e ator


francês, mas também é possí-


vel apontar tom do filme como


um todo mais inspirado pelo


cineasta finlandês Aki Kau-


rismäki e pelo ator e comedian-


te Larry David (Segura a Onda,


a série do americano autor de


Seinfeld, está no ar atualmente


na HBO na 11.ª temporada).


Além das músicas, que per-


meiam o filme e lhe emprestam


frescor e bom humor, outro as-


pecto salta aos olhos: em algu-


mas cenas, um cenário é monta-


do com banners e tecidos, den-


tro de estúdio, acrescentando


ali outra camada do humor sur-


real. Uma solução criativa para


um problema logístico e finan-


ceiro: filmar as viagens em uma


estrada real seria um impedi-


mento definitivo.


“Tínhamos sim um orçamen-


to reduzido, mas achei que o


personagem já tinha um corpo


suficiente para o colocar num


outro de patamar de realidade”,


explica o diretor. “O que foi


uma solução de produção sumá-


ria acabou por mostrar ao longo


do filme aspectos e um olhar so-


bre o personagem em um outro


contexto. Foi uma ferramenta.


Gosto muito de trabalhar nes-


sas áreas limítrofes.”


Se Technoboss não se alinha di-


retamente à linha do humor por-


tuguês de filmes como o amalu-


cado Diamantino, o filme faz es-


colhas ousadas o suficiente pa-


ra divertir e emocionar cinéfi-


los de cá e de lá do Atlântico.


O caos de cada um


Ex-produtor de cinema e ex-


magnata de Hollywood, Harvey


Weinstein foi condenado a 23


anos de prisão. A sentença foi


anunciada na quarta, 11, em um


tribunal de Nova York, na pre-


sença de Weinstein, que podia


pegar de 5 e 29 anos de prisão.


Aos 67 anos, Weinstein foi


condenado por estupro e agres-


são sexual em 24 de fevereiro,


quando passou mal após o julga-


mento, apresentando uma alta


alarmante na pressão arterial,


além de palpitações, segundo


seus advogados. Ele foi levado di-


retamente da Suprema Corte pa-


ra o Bellevue Hospital Center,


onde foi tratado por 10 dias em


uma ala reservada a detentos.


Weinstein teve um stent im-


plantado para aliviar um blo-


queio, informou seu porta-voz,


Juda Engelmayer. O procedi-


mento durou pelo menos duas


horas. No dia seguinte, 5, funcio-


nários da prisão transferiram


Weinstein para Rikers Island,


no Bronx, para evitar acusações


de favoritismo. Harvey já con-


tratou um consultor penitenciá-


rio para ajudá-lo na sua adapta-


ção a uma cela de prisão.


A condenação do empresário


é a primeira vitória na Justiça


do movimento #MeToo, que


abalou Hollywood e a indústria


do entretenimento.


O júri considerou Weinstein


culpado de agressão sexual em


primeiro grau por praticar sexo


oral forçado na ex-assistente de


produção Mimi Haleyi, em julho


de 2006, e por estupro em tercei-


ro grau da ex-atriz Jessica Mann


em março de 2013. Ele foi inocen-


tado de outros dois delitos mais


graves, que poderiam levá-lo à


prisão perpétua: estupro em 1.º


grau de Mann e a acusação de ser


um predador sexual.


Mimi Haleyi e Jessica Mann


foram aplaudidas na entrada do


tribunal. Haleyi caiu no choro


quando disse ao juiz James


Burke que o ataque de 2006 a as-


sustou muito, fez com que repen-


sasse se queria mesmo ser atriz e


a deixou paranoica e com medo


de retaliação. “Acredito que se


Harvey Weinstein não tivesse si-


do condenado, isso aconteceria


de novo e de novo”, afirmou.


Ela relembrou o momento em


que, durante o julgamento, saiu


da sala e seus gritos, em uma sala


ao lado, puderam ser ouvidos no


tribunal. “O dia em que meus gri-


tos foram ouvidos de dentro da


sala de testemunhas foi o dia em


que minha voz voltou.” Ela lem-


brou ainda que foi uma vítima da


“paralisia do estupro” e que não


podia lutar. “O estupro não é só


o momento da penetração, ele


dura para sempre.”


Os advogados de Weinstein


pediram leniência por causa de


sua saúde frágil. O ex-produtor


disse aos jurados que os ho-


mens que estão enfrentando


acusações após o movimento


#MeToo estão sendo acusados


de “coisas que ninguém enten-


de”, dizendo também que esta-


va confuso quanto ao caso de es-


tupro que o colocou na prisão.


“Milhares de homens estão per-


dendo por causa do processo.


Estou preocupado com este


país”, disse o ex-magnata de-


pois que duas de suas vítimas o


confrontaram no tribunal.


Já os procuradores disseram


que o ex-magnata merecia uma


pena dura por conta de todas as


acusações feitas e que remon-


tam aos anos 1970. / COM AP E AFP


Cinema. De tons absurdos, português ‘Technoboss’


lança olhar honesto para a terceira idade


JOHANNES EISELE/AFP

Polêmica. O ex-magnata


do cinema, de 67 anos,


tinha sido condenado por


estupro e agressão


sexual em fevereiro


Sai sentença e Harvey


Weinstein pega 23


anos de prisão


Harvey. Ele contratou consultor penitenciário para ajudá-lo na sua adaptação a uma cela


Miguel


Lobo


Antunes.


À direita,


sua estreia


no cinema


Loucura


de amor


VITRINE FILMES

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C6 Caderno 2 QUINTA-FEIRA, 12 DE MARÇO DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO


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