CRÔNICAS
DE SP
O retorno de um
amigo imaginário
A
última vez que a gente
conversou eu tinha o quê?
Acho que uns 9 ou 10
anos? Não me lembro de uma des-
pedida específica. Um belo dia
você simplesmente não apareceu
mais. Te procurei embaixo da ca-
ma, dentro do armário e até da
geladeira. Ia dormir com a sensa-
ção que a qualquer momento vo-
cê iria me chacoalhar pelo ombro.
Nada disso aconteceu. Você
sumiu da minha vida e eu me es-
queci de você. Simples assim.
Na época, minha mãe disse que
eu já estava ficando mocinho – e
para eu crescer era mandatório
que você desaparecesse de vez.
Foi como se você nunca tivesse
existido. Aliás, acho que você
nunca existiu mesmo.
Ainda assim, fico feliz que você
tenha decidido dar o ar da graça
justamente agora.
Como já deve ter notado, não
tenho muito o que fazer aqui. As-
sisto televisão, fico maratonan-
do umas séries idiotas, atendo o
telefone, falo sobre meu estado
febril, presto atenção na minha
tosse seca e espero. Ah, o médico
nem desconfia, mas fico me entu-
pindo de salgadinho. Quer um
pouco? Tem refri na geladeira.
Tenho mais uma semana de
quarentena. Testei positivo para
o coronavírus. Espero que isso
não te assuste – acredito que ami-
gos imaginários sejam imunes ao
vírus, né?
Quando eu era criança a gente
passava horas conversando so-
bre coisas incríveis que eu nunca
consegui me recordar. Já adianto
que agora meus assuntos são me-
nos interessantes. Quer falar da
alta do dólar? Dos riscos à demo-
cracia na América do Sul?
Não sei se você tinha muitas
expectativas em relação ao meu
futuro. Aos 8 anos, eu era astro-
nauta, cientista, super-herói, poe-
ta, artilheiro, mágico... Eu era
um projeto interessante de adulto.
Hoje, sei que não sou um desastre
completo, mas sou apenas isso aqui
que você está vendo – e entendo se
você não achar tanta graça.
Lembra da vez que eu tive saram-
po? Acho que rolou algo parecido.
Fiquei uns dias de molho em casa.
Na ocasião, brincamos de futebol
de botão, Comandos em Ação, Play-
mobil, baralho, bola e boneca.
Sim, quando minha mãe entrou
no quarto eu estava brincando com
a boneca da minha irmã e falando
sozinho. Ela não me disse nada na-
quele momento, mas na semana
seguinte, já livre do sarampo, fui
visitar uma psicóloga.
Você ri, né? Hoje isso seria um
absurdo, minha mãe não é uma pes-
soa preconceituosa. Mas nos anos
80 era assim mesmo.
Outra lembrança bacana foi sua
companhia no meu primeiro dia de
aula. Eu tinha muito medo de todos
aqueles moleques que eu não co-
nhecia e que, pra mim, eram ruins e
valentões. Você ficou do meu lado
o tempo todo, dentro da sala de au-
la e na hora do recreio. Quando um
dos meninos tentou tomar meu lan-
che, foi você quem jogou o suco de
laranja na cara dele, não foi? Ué?
Não? Eu nunca reagiria assim. Fui
direto para diretoria e fiquei sem
videogame por uma semana.
Você me deixou muito bravo
quando ficou rindo da minha pri-
meira paixão. Lembro que ficava
fazendo caretas atrás da garota,
que me fazia rir de nervoso e ficar
vermelho. O dia que eu decidi me
declarar você ficou todo emburra-
do, mas prometeu me ajudar. Eu só
tinha 8 anos, não sabia o que fazer.
Se eu não me engano, a ideia do cho-
colate e do beijinho no rosto foi
sua. Bom, ela gostou do chocola-
te, mas começou a chorar quan-
do tentei o beijinho. Ela estava
certa, né? De novo, fui para dire-
toria, fiquei duas semanas sem
videogame e minha mãe me le-
vou para a psicóloga pela segun-
da vez. Hahaha...
Que bom te ver rindo desse jei-
to. Acho que não ficou nenhum
sentimento ruim entre a gente,
não é? Eu não quis te esquecer.
Quero dizer, não foi de propósi-
to. Quando a infância vai embo-
ra, a gente acaba esquecendo de
muita coisa importante e legal.
Crescer é inevitável, mas não é
tão incrível. Sabe, as pessoas valo-
rizam muito isso que chamam de
“amizade verdadeira”. Acho que
precisam começar a valorizar
mais as “amizades imaginárias”.
Gilberto Amendola
DI VASCA/ESTADÃO
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O ESTADO DE S. PAULO
13/3/2020 A 19/3/2020