O Estado de São Paulo (2020-03-13)

(Antfer) #1

%HermesFileInfo:C-6:20200313:


C6 Caderno 2 SEXTA-FEIRA, 13 DE MARÇO DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO


IGNÁCIO DE


LOYOLA BRANDÃO


H


á pessoas que chegam tarde


à vida da gente, mas chegam


e ficam para sempre. Como
é o caso de Edson Alves, que entrou

no meu caminho há seis anos e me


iluminou desde então. Nós nos co-


nhecemos quando minha filha Rita


Gullo montou um pequeno conjun-


to musical para nos acompanhar no


show Solidão no Fundo da Agulha. O


grupo acabou tendo um nome im-


provisado, que ficou Pai, Filha e Es-


pírito Santo. Há 72 meses rodamos


por este Brasil. Não ganhamos di-


nheiro, mas conhecemos gente e lu-


gares e nos divertimos.


Sempre que chegávamos a uma


cidade nova, ou teatro, auditório, bar,


o que fosse, e olhávamos a plateia ain-


da vazia, Edson lembrava um período
em que acompanhou Adoniran Barbo-

sa em uma temporada. Adoniran, con-


tava ele, chegava, abria um pedacinho


de cortina e dizia: “Está um fedor de


ausência”. Riam e, se ninguém apare-


cia, iam todos para um bar. Com Ed-


son, veteraníssimo, admirado por to-


da a classe, aprendemos, Rita e eu,


que a plateia é fundamental, mas fa-


zer o show, tenha quantos tiver, é


mais importante do que tudo. Sempre


fizemos o Solidão alegremente, puxa-


dos pelo nosso violonista.


Sua morte, na semana passada, foi


tão rápida, desnorteante, que, quan-


do soubemos, ele já estava cremado.


Um grupo enorme de amigos ainda


conseguiu chegar ao crematório e se


despedir com canções e casos. Por-


que Edson tinha um repertório enor-


me de histórias de músicos, sobre


músicos, para músicos. Sua morte,


aos 68 anos, frustrou a ideia que tínha-


mos os dois de contar em livro tudo o


que ele viu e viveu.


Esse nosso pocket show, com histó-


rias de minha vida conduzidas por can-


ções que me marcaram e cantadas por


Rita – que ele adorava e se entusiasma-


va ao ouvi-la, principalmente na can-


ção Amado Mio, do filme Gilda, um


clássico –, foi a prova de que havia


coisas que ele fazia por amor, paixão,


por se divertir também. Apaixonado


pela ideia, pelo jeito intimista, pela


maneira como tudo chegava e envol-


via a plateia. Edson tocou com todos


músicos que sabemos ser ou ter sido


importantes. Era respeitado pelo seu


estilo no violão. Poucas notas e exa-


tas. Tirava do violão os sons mais ini-


magináveis. E era correto, severo.


Rígido, ao passar o som, às vezes infer-


nizava técnicos com suas exigências,


máximas, apesar de mínimas. Queria


o som perfeito, irritava-se. Estava


sempre certo.


Quantas histórias se foram com ele.


Uma delas, me lembro, foi de quando


tocava com Ray Conniff, que usava


uma peruca perfeita, mas que um dia


foi levada pelas águas do mar, o que


deixou o mestre dos bailes desespera-


do. Por sorte, não havia plateia. E a
infinidade de festas, bailes, coque-

téis, debutantes, aniversários, quan-


do os músicos só podiam (e ainda po-


dem) entrar pelos fundos, acomodar-


se em uma área de serviço e sem po-


der provar croquete, coxinha, empa-


da, pastel, o que fosse. Se tivesse lagos-


ta e caviar, nem podiam se aproximar,


os garçons passavam ao largo. Histó-


rias de como o trabalho de artistas


funcionou ao longo de décadas. E o


músico de renome que, convidado pa-


ra tocar em uma festa, perguntou: “É


de carnaval? Não trabalho em carna-


val, de modo algum”. O contratan-


te garantiu de pés juntos que não


era e o músico notável foi, apertou


a campainha e foi recebido na porta


pelo Rei Momo. Virou as costas e se


mandou.


Ele nos acompanhou de peque-


nos bares à inauguração de Sescs,


fomos do sul ao norte, vilas e capi-


tais. Mas houve um lugar que adorá-


vamos, o restaurante Gênova, ínti-


mo, com uma das melhores comi-


das italianas de São Paulo. Edson


adorava quando João Gianesi pro-


movia nosso show a propósito de


nada e tudo. Ele morreu sem levar o
filho outra vez para comer o espa-

guete limone, imbatível.


Vamos sentir falta de Edson e de


suas reclamações (o box do chuvei-


ro do hotel sempre entupia, justo


com ele), de sua simplicidade, do


cafezinho que tomava antes de ca-


da show. Ele adorava dar aulas para


jovens carentes que formavam


uma orquestra no Auditório Ibira-


puera. Ficou triste quando foi tira-


do de lá, assim como todos os que o


conheceram estão desolados com


a sua partida para sempre.


Luiz Carlos Merten


Sexta-feira 13 e o Noitão Petra


Belas Artes celebra o terror.


Uma madrugada de sustos,


mas, quando ela começar, o pú-


blico já estará a salvo – porque


será sábado, 14. O Noitão come-


ça com a pré-estreia de Posses-


são – O Último Estágio, a partir


de 23h30. O longa do cineasta


de Cingapura Pearry Reginald


Teo é sobre um pai que, como


parte do processo de amadure-


cimento do filho, força o garoto


a encarar os próprios medos.


Quando o menino começa a ver


monstros, o caminho para a pos-


sessão está aberto. No estágio


final, a entidade demoníaca en-


tra em simbiose com a alma do


hospedeiro. O cinéfilo, com cer-


teza, lembra de Regan/Linda


Blair, possuída por Pazuzu e


transformada num monstro no


cultuado O Exorcista, de 1973.


Justamente o filme famoso


de William Friedkin. Importan-


tes críticos e historiadores gos-


tam de fazer abordagens de cu-


nho sociopolítico. O Exorcista


repercutiu tanto porque forçou


a América, fragilizada, a olhar-


se num espelho. O escândalo de


Watergate, que levou à renún-


cia do presidente Richard Ni-


xon, solapou as instituições,


despertou desconfiança. Nesse


quadro, o que parecia perfeito –


a garota linda, filha de uma es-


trela de cinema –, vira aquela


coisa monstruosa. O Exorcista


virou um fenômeno planetário.


Teve muitas imitações. Uma de-


las foi feita na Itália e será uma


das atrações do Noitão. Anto-


nio De Martino não é um dire-


tor pelo qual os


críticos tenham


apreço. Copiou


receitas e trans-


formou-as em fil-


mes de sucesso.


Épico, spaghetti


western, espionagem à James


Bond, Máfia. Em 1974, cometeu


o seu exorcismo.


Garota carrega as sequelas de


um acidente. Amargurada, sub-


mete-se a um ritual católico,


em busca de um milagre, mas a


perda da fé a torna presa fácil


para o Demônio. O Anticristo –


nada a ver com a versão de Lars


Von Trier – foi feito com orça-


mento irrisório, o que não impe-


diu o diretor de contar com a


grande atriz Ali-


da Valli (dos fil-


mes de Visconti,


Hitchcock e Ber-


tolucci) além do


compositor En-


nio Morricone.


Recebido a pedradas, na época,


o filme virou cult. De Martino


filma orgias em que a garota, in-


terpretada por Carela Gravina,


faz sexo com o próprio Diabo.


O público do Noitão mal terá


tempo de recuperar o fôlego e


começarão as emoções de Stig-


mata, de Rupert Wainright. O


terror de 1999 pertence à leva


de filmes produzidos na onda


da paranoia que antecedeu a


aurora do ano 2000. Havia o


medo de que se concretizas-


sem as sinistras profecias de


Nostradamus, e na nova era di-


gital o apocalipse teria a forma


do bug do milênio.


A ficção de Wainright começa


numa cidade do interior do Bra-


sil, onde o padre Gabriel Byrne,


enviado pelo Vaticano, investi-


ga o caso da estátua da santa que


verte lágrimas de sangue. Salta


para Nova York, onde Patricia


Arquette começa a sofrer, no


próprio corpo, o flagelo da stig-


mata, as chagas de Cristo. De no-


vo Byrne investiga o caso, e des-


sa vez se choca com Jonathan


Pryce, como o arcebispo que


quer abafar o caso. Tanto quan-


to a paranoia e o medo, o Noitão


aborda temas polêmicos ligados


à religião. No limite, o que está


em discussão é o crer, ou não


crer. Só que, mais que a transcen-


dência e a elevação, esses filmes


lidam com o horror da existên-


cia, os aspectos mais autoritá-


rios das instituições religiosas.


Como sempre a programação


inclui um filme surpresa. Boa


sorte para os corajosos que se


preparam para ingressar nessa


madrugada de emoções fortes.


IGNÁCIO DE LOYOLA BRANDÃO
ESCREVE ÀS SEXTAS-FEIRAS

A paixão pelo


violão de Edson Alves


Cinema. Pré-estreia de ‘Possessão – O Último Estágio’, às 23h30, abre programação de muitos sustos nesta sexta, 13, no Belas Artes


Ele tinha um repertório enorme


de histórias de músicos, sobre


músicos, para músicos


Noitão está de volta e celebra o terror


NA SEQUÊNCIA,


PASSA ‘STIGMATA’,


DE RUPERT


WAINRIGHT, DE 1999

Free download pdf