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O ESTADO DE S. PAULO SEXTA-FEIRA, 13 DE MARÇO DE 2020 A
WASHINGTON
A pandemia de coronavírus se
transformou em tema da cam-
panha americana. Ontem, os
dois pré-candidatos democra-
tas, o ex-vice-presidente Joe Bi-
den e o senador Bernie Sanders,
criticaram a resposta de Donald
Trump, tentando estabelecer
um contraste claro com o dis-
curso do presidente na noite de
terça-feira.
“Infelizmente, este vírus des-
nudou as limitações graves do
governo atual”, disse Biden,
que acusou o presidente ameri-
cano de “xenofobia” ao se refe-
rir à doença como um “vírus es-
trangeiro”. “O coronavírus não
discrimina com base em origem
nacional, raça, gênero ou código
postal. Proibir todas as viagens
da Europa ou qualquer outra
parte do mundo pode desacele-
rá-lo, mas, como vimos, não o
deterá.”
Sanders, que disputa com Bi-
den quem será o candidato de-
mocrata nas eleições de novem-
bro, também aproveitou para
atacar a reação da Casa Branca.
“A incompetência de Trump co-
locou em risco a vida de muitos
americanos”, disse o senador,
que defendeu que o presidente
declare estado de emergência
no país. “Como o Trump é inca-
paz de liderar, devemos reunir
um grupo de emergência com
especialistas para dar uma res-
posta abrangente com base na
ciência e nos fatos.”
Do outro lado, na Casa Bran-
ca, a campanha do republicano
começa a se preocupar com o
avanço do vírus. Desde o início,
o presidente tentou minimizar
o impacto da pandemia, princi-
palmente em razão da percep-
ção de que a reeleição dependia
dos bons números da economia
americana e do crescimento do
mercado financeiro.
Agora, com mais de mil casos
confirmados, 39 mortes e uma
escassez nacional de kits de tes-
tes, a Casa Branca entrou na li-
nha de frente das críticas. “A rea-
ção inicial de Trump, minimi-
zando e politizando o vírus, arra-
nhou a credibilidade do gover-
no”, disse Mike DuHaime, um es-
trategista republicano. “A força
da campanha do presidente está
na economia. Se ela naufragar,
ele será politicamente afetado.”
“Atualmente, eu preferia mui-
to mais ser Joe Biden que Do-
nald Trump”, afirmou à Reu-
ters um republicano próximo
da Casa Branca. “Um mês atrás,
tinha Sanders como provável
adversário, a economia saudá-
vel e sua popularidade crescen-
do após o impeachment. O coro-
navírus foi um desastre.”
Independentemente do resul-
tado eleitoral em novembro, a
pandemia já mudou a campa-
nha americana. Os democratas
anunciaram ontem que o deba-
te entre Sanders e Biden, que se-
ria realizado a portas fechadas
no domingo, em Phoenix, foi
transferido para Washington.
As próximas prévias são na
terça-feira em quatro Estados:
Arizona, Florida, Illinois e Ohio.
Com os comícios temporaria-
mente suspensos, a campanha
passou a ser realizada de manei-
ra virtual, com os assessores tra-
balhando de casa. / AP e REUTERS
Biden e Sanders criticam reação de Trump ao coronavírus
DREW ANGERER/GETTY IMAGES/AFP
Às vésperas de mais
uma rodada de prévias,
democratas atacam
resposta tímida da
Casa Branca à pandemia
Paulo Beraldo
Em tempos de ascensão de go-
vernos autoritários em diferen-
tes regiões do mundo e do avan-
ço de discursos de extrema di-
reita, o historiador italiano Emi-
lio Gentile adverte que não con-
vém usar o termo fascismo pa-
ra criticar esses movimentos.
Gentile, que é professor apo-
sentado da Universidade de
Roma Sapienza, já escreveu de-
zenas de livros sobre o fascis-
mo italiano e diz que o fenôme-
no atual tem mais a ver com a
crise da democracia.
lÉ comum ver o termo fascis-
mo para descrever movimentos
autoritários. Está correto?
Acredito que se faz confusão
entre o termo fascismo para se
referir a qualquer movimento
de extrema direita racista, na-
cionalista e antissemita com
aquilo que foi o fascismo his-
tórico, um regime totalitário
nacionalista, racista e antisse-
mita, mas com características
próprias ligadas a experiências
da Itália, Alemanha e outros
movimentos de extrema direi-
ta que se inspiravam no fascis-
mo do período entre a 1.ª Guer-
ra (1914-1918) e a 2.ª Guerra
(1939-1945). Hoje não existem
movimentos que desejem ins-
taurar um regime totalitário
com um partido armado e um
programa de guerra imperialis-
ta. Essa é a característica fun-
damental do fascismo históri-
co. Mesmo países que querem
ter um papel hegemônico o fa-
zem por meio da economia.
lEntão, o termo fascismo não
qualifica os movimentos atuais?
Não, porque hoje são movi-
mentos e partidos que exer-
cem o seu poder com o consen-
so da maioria dos eleitores. É
absurdo pensar que o fascis-
mo, que negava por prática e
sobretudo por princípio o con-
ceito de soberania popular, po-
deria ser representado por mo-
vimentos que reivindicam o su-
cesso eleitoral e se dizem re-
presentantes do povo e eleitos
pela maioria.
lA extrema direita está na Euro-
pa, EUA e Brasil. Por que cresce?
Ela aumenta sobretudo nos paí-
ses que se sentem ameaçados
em termos de segurança ou na-
queles que presumem que sua
identidade nacional esteja amea-
çada. E isso é paradoxal. Gran-
des países como EUA ou Brasil
dificilmente podem falar de
uma única identidade nacional.
lQual seria a resposta das de-
mocracias?
As principais razões desses na-
cionalismos autoritários, ainda
que baseados na soberania po-
pular, deve-se ao fato de que a
democracia não se limita a ter
o princípio da soberania popu-
lar exercitado pelo voto em
eleições livres e pacíficas. É
preciso não esquecer do ideal
de construir por meio do méto-
do democrático uma sociedade
de pessoas livres, iguais e sem
discriminação de nenhum gê-
nero, para garantir o desenvol-
vimento de suas personalida-
des. Hoje, há democracias que
aplicam o método democráti-
co, mas não perseguem as reali-
zações dos ideais democráti-
cos. E há uma distinção impor-
tante a se fazer. Na democra-
cia, pode haver um regime con-
tra as liberdades individuais
em favor de uma maioria eleti-
va, como foi no sul dos EUA,
até os anos 60, ou no apar-
theid, na África do Sul. Eram re-
gimes populares que excluíam.
Pode-se usar a democracia con-
tra o ideal democrático. O peri-
go está nos democratas no po-
der sem o ideal democrático.
Internacional
ENTREVISTA
Não faz sentido dizer
que tudo é fascismo,
afirma historiador
Emilio Gentile, historiador italiano
Espionagem interna. Serviço secreto alemão considera grupo mais radical da Alternativa para a Alemanha como ameaça à democracia;
legenda já tem mais de 32 mil simpatizantes, dos quais cerca de 7 mil serão monitorados e podem ser classificados como ‘extremistas’
Ascensão da extrema
direita representa crise da
democracia e não é o
mesmo movimento que
ocorreu na Itália
BERLIM
Com o argumento de que re-
presenta um perigo para a de-
mocracia da Alemanha, 75
anos após o fim do nazismo, a
ala mais radical do partido de
extrema direita Alternativa
para a Alemanha (AfD) foi co-
locada ontem sob vigilância
policial. O terrorismo de ex-
trema direita “representa
atualmente o principal peri-
go para a democracia na Ale-
manha”, afirmou o presiden-
te do serviço secreto alemão
(BfV), Thomas Haldenwang.
Após vários ataques realiza-
dos por extremistas, Hal-
denwang anunciou que a ala co-
nhecida como “Der Flügel” (A
Asa) é hoje a principal força de
oposição na Câmara dos Depu-
tados e estará sob vigilância po-
licial. Segundo o diretor do ser-
viço secreto alemão, há claros
indícios de inconstitucionalida-
de nas ações do grupo, que esta-
riam influenciando a liderança
do partido, uma vez que seus
dois principais líderes são extre-
mistas de direita.
O movimento “Der Flügel” é
liderado por Björn Höcke, um
político do Estado da Turíngia.
Ele não faz parte da estrutura
partidária oficial da AfD e, por-
tanto, não há uma lista de seus
membros. Segundo o serviço se-
creto alemão, calcula-se que
20% do partido, ou seja, cerca de
7 mil pessoas, pertença a esse
grupo radical, como informa a
TV Deustche Welle. Em todo o
país, estima-se que haja cerca de
32 mil extremistas de direita.
Há algumas semanas,
Höcke estava no epicentro de
uma controvérsia em razão de
uma aliança com a direita mo-
derada da União Democrata-
Cristã (CDU), partido da chan-
celer Angela Merkel. A união
entre CDU e AfD se deu nas
eleições regionais, mas teve
consequências nacionais,
com a renúncia da presidente
do partido governista, Anne-
gret Kramp-Karrenbauer, que
era a principal cotada para
substituir Merkel.
Höcke e seus seguidores rejei-
tam a cultura do arrependimen-
to pelos crimes nazistas e ale-
gam que existe uma ameaça de
que a população alemã seja
“substituída” por imigrantes.
Na Alemanha, apenas as or-
ganizações mais extremistas,
consideradas um perigo po-
tencial para o Estado, são colo-
cadas sob vigilância policial.
Em janeiro de 2019, o serviço
secreto já havia declarado que
a ala radical da AfD era suspei-
ta de extremismo de direita,
assim como o grupo jovem do
partido, o “Junge Alternati-
ve”.
Após o ataque de motivação
racista em Hanau, no mês pas-
sado, que deixou 11 mortos,
cresceram os pedidos para
que a AfD fosse monitorada.
A nova classificação signifi-
ca que o grupo pode ser obser-
vado com o uso de todo tipo
de recursos de inteligência, o
que inclui a espionagem de
pessoas para a coleta de dados
e o recrutamento de informan-
tes dentro do partido.
“Hoje, sabemos que as de-
mocracias podem fracassar
quando seus inimigos a destro-
em por dentro. É uma adver-
tência que nossa história nos
envia”, disse Haldenwang. Ele
destacou ainda que o movi-
mento de extrema direita
mais radical do país tem quase
32 mil simpatizantes, incluin-
do 13 mil pessoas dispostas a
cometer atos de violência.
Ameaça. O serviço de inteli-
gência alemão informou tam-
bém ter constatado que a “Der
Flügel” e seus líderes podem ser
classificados como “extremis-
tas” que “questionam” em seus
discursos e ações “símbolos for-
tes do regime democrático ale-
mão”, além da “dignidade huma-
na e do Estado de direito”, de
acordo com a Deutsche Welle. A
copresidente da AfD, Alice Wei-
del, criticou a medida. “A AfD
fará todo o possível para impe-
dir a observação” afirmou. / AFP
Alemanha coloca ala do partido de
extrema direita sob vigilância policial
PANDEMIA DO
CORONAVÍRUS
ANDREAS GEBERT / REUTERS–3/10/
Extremismo. Björn Höcke faz campanha em Mödlareuth, na Turíngia: líder da AfD está na mira das autoridades alemãs
Em campanha. Biden elege Trump como alvo preferencial