O Estado de São Paulo (2020-03-15)

(Antfer) #1

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O ESTADO DE S. PAULO DOMINGO, 15 DE MARÇO DE 2020 Economia B7


Renato Jakitas


Imagine acordar e descobrir
que o governo bloqueou todos
os saques em valores superio-
res a R$ 18 mil, isso em aplica-
ções financeiras, caderneta de
poupança e até na conta corren-
te. Foi esse o cenário encontra-
do pelos brasileiros em 16 de
março de 1990, quando foram
detalhadas as medidas do Plano
Collor 1. Baseado na prefixação
da correção de preços e salá-
rios, câmbio flutuante e aumen-
to de tributação sobre aplica-
ções, trazia como ponto mais
polêmico o confisco de 50 mil
cruzados novos da época (equi-
valentes hoje aos R$ 18 mil). O
enxugamento drástico de di-
nheiro em circulação no País
serviria para lidar com uma in-
flação que, nos cinco anos ante-
riores, somara 1.062.000%.
“Não havia alternativa”, diz o
ex-presidente e hoje senador
Fernando Collor de Mello
(Pros-AL). “Vários economis-
tas se pronunciaram dizendo
que, se não fosse aquele blo-
queio de ativos, chamado equi-
vocadamente de confisco, não
poderia ter havido o controle de
preços de forma satisfatória.”
Passados 30 anos, a fila de in-


vestidores que buscam o ressar-
cimento de perdas não é peque-
na. Segundo estimativa dos ban-
cos e de órgãos de defesa do con-
sumidor, existem hoje pelo me-
nos 144 mil poupadores ou seus
herdeiros elegíveis a pleitear
compensação financeira.
Na semana passada, foi anun-
ciada a assinatura de um novo
acordo entre o Instituto Brasilei-
ro de Defesa do Consumidor (I-
dec), Frente Brasileira dos Pou-
padores (Febrapo), Confedera-
ção Nacional do Sistema Finan-
ceiro (Consif) e Federação Brasi-
leira de Bancos (Febraban), am-
pliando em mais cinco anos o
prazo para demandar a compen-
sação de antigos planos econô-
micos – entre eles, o Plano Col-
lor 1. A mudança ainda precisa
ser homologada pelo Supremo
Tribunal Federal (STF).
O limite de adesão ao acordo
era de dois anos, contados a par-
tir da primeira homologação do
STF, em março de 2018. Em tro-
ca da extinção das ações judiciais
sobre o tema, os bancos se com-
prometeram a pagar aos poupa-

dores a diferença entre o índice
de inflação vigente no período e
a atualização monetária que efe-
tivamente incidiu sobre os de-
pósitos nas cadernetas, os cha-
mados expurgos inflacionários.

‘Medidas duras’. Foi uma en-
xurrada de decretos e medidas
provisórias que o próprio Col-
lor anunciou no dia da posse (15
de março) e entregou, na ma-
nhã seguinte, ao Congresso.
“São medidas duras e profun-
das”, disse na ocasião a então
ministra da Economia Zélia Car-
doso de Mello em uma contur-
bada entrevista convocada para
explicar o pacote.
Três dias antes, a própria Zé-
lia havia descartado a possibili-
dade de um confisco. Os rumo-
res sobre a divulgação de algu-
ma medida de impacto no mer-
cado financeiro começaram a
circular no começo daquela se-
mana, quando, a pedido de Col-
lor, o ainda presidente José Sar-
ney decretou feriado bancário
de três dias (14, 15 e 16 de mar-
ço). O brasileiro, escaldado por
dez planos econômico nos últi-
mos 25 anos, sabia que essa era a
senha para novas mudanças.
Nos choques anteriores, po-
rém, houve feriado apenas nos
dias posteriores às divulgações
das medidas, para adaptação do
mercado financeiro às novas re-
gras. “Nos últimos dias, foram
percebidos movimentos espe-
culativos, que poderiam causar
intranquilidade”, afirmou Zé-
lia, na ocasião, em defesa dos

feriados bancários. O presiden-
te do BC no final do governo Sar-
ney era Wadico Bucchi. Seu su-
cessor no período de Collor foi
Ibrahim Eris.
Três dias antes do anúncio do
pacote, aquela que seria a minis-
tra da Economia de Collor foi per-
guntada diretamente sobre o ris-
co de um confisco. Na saída de
reunião, em Brasília, ouviu-se a
pergunta: “Vai haver confisco no

over?”. O overnight era uma apli-
cação financeira que rendia aos
investidores taxas de juros diá-
rias, e não mensais, como habi-
tualmente acontece hoje. “Meu
dinheiro continua depositado
no over”, ela respondeu. Nova
pergunta: “Vai haver confisco de
dinheiro no mercado financei-
ro?” “Não”, respondeu. Procura-
da na semana passada, Zélia dis-
se que não daria entrevista.

ENTREVISTA


Simone Cavalcanti


Ex-presidente do Goldman Sa-
chs no Brasil e atualmente pro-
fessor de Finanças na Herbert
Business School of Miami Uni-
versity, o economista Paulo Le-
me afirma que existe hoje uma
crise de liderança no mundo,
principalmente nos Estados
Unidos, e isso está desancoran-
do o mercado. “Ninguém é res-
ponsável. E é a isso que o mer-
cado está reagindo”, diz ele, so-
bre o movimento de baixa da
semana passada. Nesse senti-
do, seria necessária uma atua-
ção ousada assim como coor-
denada entre as nações em ma-
téria monetária, de crédito e
fiscal, inclusive em termos de
saúde, para mudar as expectati-
vas e reverter a corrida por se-
gurança. Enquanto não houver
essa mudança de expectativas,
afirma ele, o sistema ficará à
deriva e se espera o pior resul-
tado possível. A seguir, os prin-
cipais trechos da entrevista.


lOs mercados perderam a refe-
rência? Qual a sua perspectiva?
O mercado está desancorado.
Responde aos sinais que ele re-
cebe do setor real da econo-
mia e também da parte de po-
lítica econômica e da política
como um todo. E, no momen-
to, o mercado acha que não va-


le a pena manter posições e,
por isso, está numa fuga para
ativos seguros, como títulos
do Tesouro americano, ouro e
vendendo ativos de risco que
vão desde ações a bônus de em-
presas como papéis de países
emergentes.

lEsse pânico tem razão de ser?
Eu não chamaria de pânico.
Há uma conjuntura extrema-
mente desafiadora e resultado
de três variáveis importantes.
Primeiro, o choque inesperado,
que causa muita incerteza, que
é o coronavírus, onde nem as
autoridades médicas muito me-
nos as políticas têm sido capa-
zes de lidar de forma eficiente.
Isso desancora o mercado. Em
segundo lugar, outro choque
que se sobrepõe e está parcial-
mente relacionado é a quebra
do acordo de produção dos paí-
ses da Opep (Organização dos
Países Exportadores de Petróleo),
que gerou queda muito expres-
siva do preço do petróleo. Em
terceiro lugar, e que fica muito
claro depois de semanas de con-
vivência com o vírus, é que não
há liderança política de país e,
pior, menos ainda mundial. Ou
seja, ninguém é responsável.

lJá podemos dizer que estamos
em uma crise de crédito ou ela é
iminente?
Eu diria que a pior crise agora
é a crise de liderança. Eu diria
em inglês “nobody is in char-
ge”, ninguém é responsável. É
a isso que o mercado está rea-
gindo. Por exemplo, o pronun-
ciamento do presidente dos
EUA, Donald Trump, que su-

postamente iria acalmar os mer-
cados e anunciar grandes medi-
das... Não anunciou nada de ex-
pressivo exceto algo que foi alar-
mante. Ou seja, se você tem co-
nhecimento e, por alguma ra-
zão, fecha fronteira por 30 dias
para a Europa, alguma coisa te
preocupa muito. No entanto,
não anuncia como vai atacar a
questão da contaminação nem
como encontrar medidas paliati-

vas para amenizar o impacto
econômico e no mercado finan-
ceiro. Os EUA sempre tiveram
esse papel de liderança e essa
credibilidade de conduzir o
mundo em momentos difíceis.
Hoje, não há nenhum dos dois e
cada um está tentando resolver
o problema por si só.

lFalando da questão da lideran-
ça, como o sr. classifica a lideran-
ça no Brasil?
A gente não está em posição
de personalizar ou julgar nin-
guém. Eu diria que a frase cabe
para qualquer lugar: ‘Nobody
is in charge’.

lTemos visto nos últimos dias
muitos anúncios de incentivo mo-
netário. Por que não há fiscal e
no que isso ajudaria mais?
Até o momento, com exceção
da Inglaterra, que ofereceu um
pouco mais em matéria fiscal,
a reação principal que está limi-
tando a velocidade e a intensi-
dade de respostas à crise tão
grave é que se tem um espaço

fiscal muito limitado. Com to-
da essa liquidez e a queda das
taxas mais longas de juros, se
vê o endividamento não só so-
berano, mas também das em-
presas. Então, o espaço para fa-
zer política contracíclica fiscal
é muito limitado. Mas é impor-
tante fazer porque uma das
consequências do vírus é inibir
atos de consumo e isso é um
choque de demanda muito for-
te, especialmente no setor de
serviços. Por isso, é preciso en-
trar com a política fiscal, para
expandir a demanda agregada
e, com isso, compensar a que-
da do consumo privado gerada
pela incerteza do vírus.

lMas também há riscos com
estímulos fiscais...
Em condições ideais, não se-
ria recomendável ter um au-
mento do gasto primário nem
das economias avançadas
nem das emergentes. Mas, en-
tre as alternativas, não fazer é
muito pior do que ter uma de-
terioração fiscal de curto pra-

zo. Porque pode-se entrar em
dois problemas. Primeiro, uma
cadeia de inadimplência, ou se-
ja, as empresas já têm dificul-
dade por falta de capital de tra-
balho, há aquelas com proble-
ma de liquidez e, aí, o crédito
fecha e começa a ter proble-
mas de pagamentos. Se conti-
nuarmos nesse ritmo, em uma
ou duas semanas podemos co-
meçar a ter eventos de crédito
e problemas de liquidez gra-
ves, que poderiam começar a
afetar um setor que hoje está
muito bem posicionado, que é
o financeiro.

lPara o Brasil, há algum compo-
nente a mais de preocupação no
movimento do câmbio além do
próprio fortalecimento do dólar?
A desvalorização do câmbio,
além do preço justo de equilí-
brio de longo prazo, já vinha
ocorrendo antes do processo
do coronavírus ser conhecido.
A razão é muito simples. Uma
escolha binária: se escolhe cor-
tar os juros, que era a medida
correta a ser tomada pelo Ban-
co Central, não se pode espe-
rar que o câmbio fique no mes-
mo lugar. A decisão correta e
positiva de cortar a taxa de ju-
ros para 4,25% no Brasil cau-
sou uma redução dos fluxos de
capital muito expressiva, por-
tanto, a oferta de dólar dimi-
nuiu muito.

lTensões políticas recentes têm
ajudado a pressionar o dólar?
Na questão política, acho que
perdemos grandes oportunida-
des para entrarmos nessa crise
em outro patamar, com maior
grau de fluxo de capitais, inves-
timentos em infraestrutura,
privatizações. A política impe-
diu que estivéssemos em me-
lhores condições iniciais. Ago-
ra, dada a ordem de grandeza,
é a diferença entre uma arma
nuclear e uma banana de dina-
mite. Fundamental, e o que as
pessoas esquecem, o câmbio é
um ativo financeiro e, portan-
to, responde muito a expectati-
vas e notícias. Contribuir só
com notícias negativas é dar ti-
ro no pé. O Brasil, que sempre
respondeu bem durante crises,
poderia aproveitar esse mo-
mento desafiador para a econo-
mia mundial para fazer o que
tem de ser feito em reformas e
tentar minimizar o impacto na
atividade, e no balanço de pa-
gamentos.

PANDEMIA DO CORONAVÍRUS


l‘Controle’

Collor. Subindo a rampa do Planalto (acima) e com Zélia

Fernando Collor de Mello,
ex-presidente e senador (Pros-AL)

lRealidade

Como o Airbnb e anfitriões estão sendo afetados. Pág. B12}


RICARDO CHAVES/ESTADÃO CONTEÚDO–15/3/1990

Medida compôs Plano
Collor 1, editado em


março de 1990; 144 mil


poupadores têm direito a


ressarcimento de perdas


“Vários economistas
disseram que, se não fosse
aquele bloqueio de ativos,
chamado equivocadamente
de confisco, não poderia ter
havido o controle de preços
de forma satisfatória.”
Fernando Collor de Mello
EX-PRESIDENTE E SENADOR (PROS-AL)

Há 30 anos, brasileiro recebia o


anúncio de confisco da poupança


PROTASIO NENE/ESTADÃO–12/12/1990





O plano anunciado por seu
governo não foi ambicioso
demais?
Sem dúvida, porque ambicioso
era o nosso ideal. Quando fize-
mos o congelamento, tínha-
mos de resolver a questão do
excesso de moeda na econo-
mia. E vários economistas se
pronunciaram dizendo que, se
não fosse aquele bloqueio de
ativos, chamado equivocada-
mente de confisco, não pode-
ria ter havido o controle de pre-
ços de forma satisfatória.





Olhando agora, teria redu-
zido ou escalonado as
alterações?
Não havia alternativa.





Por que não deu certo?
Em primeiro lugar, pe-
la falta de sustentação
política e parlamentar.





Mas seu plano foi todo
aprovado (na Câmara e
no Senado).
Tomei posse em março e, em
outubro, nós tivemos uma elei-
ção. O Congresso mudou. Já
aí eu carregava o desgaste que
qualquer governo de início
carregava consigo. E também
uma ampliação daqueles que
faziam oposição. Então, com
esse Congresso, eu demorei a
me conciliar. Esse foi um erro
fatal. É um erro fatal para
qualquer presidente achar que
pode governar sem o apoio do
Congresso Nacional.

4 PERGUNTAS PARA...

JFDIORIO/ESTADÃO–27/3/2018

“Os EUA sempre tiveram
papel de liderança e
credibilidade de conduzir o
mundo em momentos
difíceis. Hoje, cada um está
tentando resolver o
problema por si só.”

“O câmbio é um ativo
financeiro e, portanto,
responde a expectativas e
notícias. Contribuir só com
notícias negativas é dar tiro
no pé.”

Cenário. Para Leme, não elevar hoje gastos primários é pior do que uma deterioração fiscal

‘Mercado


reage à falta


de liderança


global’


Para Leme, é preciso uma


ação coordenada entre


as nações para reverter a


corrida por segurança


neste momento de crise


Paulo Leme, professor de Finanças na Herman Business School

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