O Estado de São Paulo (2020-03-15)

(Antfer) #1

minha casa está vazia, final-
mente. nada contra a minha fa-
mília, quer dizer
muita coisa contra, afinal, se-
gundo o meu analista, pratica-
mente todos os meus proble-
mas estão enraizados no cha-
mado núcleo familiar involun-
tário, quem é que escolhe o lu-
gar de onde veio? ninguém, en-
tão



  • por que eu sinto tanta culpa?

  • perguntei na última sessão
    e o doutor Apolo mergulha-
    do
    em um silêncio penetrante,
    me dá um norte, reclamo, ele diz
    que preciso aprender a convi-
    ver com as minhas próprias per-
    guntas, pra você ter uma ideia:
    meu analista é a cara do Ringo


Starr, digita aí no Google dou-
tor Apolo de Melo Caldas pra
você ver se eu estou brincando.
mas voltemos à minha casa.
o fato é que ela fica muito mais
receptível à Música quando es-
tamos só eu & ela, por isso espe-
rei todos saírem


  • pai no mercado, irmão no
    clube, mãe no salão de beleza –
    para finalmente abrir esse pa-
    cote maravilhoso que chegou
    ontem


(barulho de embalagem ras-
gando)

Clouds, leio, e me percebo
sorrindo.
viro o Disco, são 2 músicas
apenas, meu deus, os caras não
cansam de surpreender. a capa
é uma varanda
parece que da casa do John e
da Yoko pelo que li em um site,
uma varanda com vista para
um satélite da Nasa ao invés de
um simples céu.
espirro, emocionada. é que

a minha rinite ataca toda vez
que o coração aperta
e como o essencial nunca mu-
da, abro com mãos delicadas
a vitrola que herdei da minha
avó. ela morava aqui com a gen-
te, sabe como é família italiana,
até que um derrame a levou pa-
ra baixo da terra
ou para o colo de Jesus, como
diz a minha mãe, o que eu acho
uma imagem bem dramática.


  • você não amava a sua avó?

  • é claro que eu amava.

  • (visivelmente alterada) en-
    tão você tem que desejar o melhor
    para ela!

  • (mascando chiclete) mãe, a
    vó nem era cristã.
    Dona Elisa. que mulher finca-
    da no presente, nossa. por falta
    de medo da morte ela nunca se
    conectou profundamente com
    nenhuma religião. minha vó é
    da mesma geração dos fab four,
    ou seja, poderia estar vivíssi-
    ma. e adorava os Beatles, o úni-
    co som gringo que ouvia, de res-
    to só música sobre o sertão. às


vezes, eu chamava a minha vó
de Dona Prudência. e ela me
chamava de: netinha.


  • (Dr. Apolo) você tem algum
    problema com diminutivos?

  • nenhum problema com vidas
    pequenas, doutor.


retiro o Disco do plástico.
meu primeiro namorado era
beatlemaníaco, foi ele que me
apresentou a banda. gravou
um cd room pra mim, coube até
o Abbey Road, ele disse, e quan-
do eu terminei de ouvir pensei
pronto, eis o limite, não tem
como passar desse nível, e se
os Beatles só mantivessem o te-
to já seria catártico, mas o fato
é que os caras não param de
evoluir. conheci Let It Be, de-
pois The Beginners, depois
Strange Way to Say I Love You,
mas quando eles lançaram All
the Flowers, eu simplesmente
estava no topo do Everest, sé-
rio, vocês lembra quando eles
vieram para o Brasil? os ingres-
sos esgotaram em segundos,
eu só consegui entrar porque
conhecia um cara da produção.
aliás, Beto. Obrigada, eu real-
mente estou te devendo uma.
foram tantos momentos emo-
cionantes no show, as pessoas
não paravam de fazer vídeos.
mas quando o Paul começou a

cantar Yesterday, aí o pessoal
só acendeu a lanterna do celu-
lar, nós viramos um céu estrela-
do. Espirrei. nas arquibanca-
das, tinha gente de todas as ida-
des e jeitos de estar no mundo,
famílias inteiras unidas por-
que agora era hora da Música.
gostar de uma mesma banda
atenua conflitos familiares, eu
já disse isso para o Dr. Apolo, é
como torcer para o mesmo ti-
me de futebol. imagine o tanto
de família que os Beatles já
uniu? por ser uma banda unani-
me
ou quase, aqui em casa infe-
lizmente aconteceu o quase, só
eu e a minha vó que gostamos e
na época do show ela já não es-
tava mais aqui. eles tocaram
até A Day in the Life, vocês lem-
bram? fecharam com Hey Jude
e toda aquela multidão que
saiu do show caminhando pe-
las ruas do estádio em direção
aos estacionamentos e pontos
de ônibus seguiu cantando take
a sad song and make it better até
o fim da noite e eu senti como
se a morte não pudesse nos al-
cançar. uma banda que atraves-
sa tantas décadas mantendo
uma qualidade artística aluci-
nante, eles mandam o seguinte
recado para a Morte, escute.
ainda que você me alcance. eu
te venci, sou maior que você.

no ano seguinte, por ironia
do destino, o John foi diagnos-
ticado com depressão. e a Yoko
fez aquela performance incrí-
vel lá no MoMA, ela pulava de
cara em uma cama elástica re-
petidas vezes ao som de Bjork.
foi quando a banda teve um hia-
to, 6 anos sem disco. nesse
meio tempo eu assisti um DVD
do George, um show solo que
ele fez na Índia, e quando ele
cantou Something eu chorei co-
piosamente, será que o sonho
acabou?
agora os caras respondem
com essas duas Músicas
Imensas
ocupando um lado e outro
do vinil.
coloquei o disco na vitrola.
me assustei quando a minha
mãe apareceu na sala dizendo
que tinha esquecido a carteira
depois saiu
batendo a porta, nunca deu
importância para a Música dos
outros, só para a dela. fiquei es-
perando o carro dar partida.
quando o silêncio voltou, co-
loquei a agulha no disco.
deitei no tapete peludo ain-
da ouvindo o chiado
em seguida a Voz
do John cantando we are sla-
ves of desires that are not even
ours
e o teto da sala Abriu.

CLOUDS

Música. Convidados


pelo ‘Estado’,


3 ficcionistas


brasileiros, Aline


Bei, Joca Reiners


Terron e Paulo


Nogueira, imaginam


como o quarteto


estaria hoje se não


tivesse se separado


há 50 anos


Beatles,


para sempre


Alberto Bombig


Londres, um dia qualquer na se-
gunda década do século 21. John
Lennon desliga o telefone e co-
menta com George Harrison:
“Aquele cineasta, o Tarantino,
quer fazer um filme sobre os
Beatles, uma ideia esquisita, en-
tre outras coisas, no roteiro, a
banda acaba em 1970 e eu sou
assassinado sem mais nem me-
nos por um maluco na porta de
casa dez anos depois; ele diz que
essa ficção vai mostrar que o
mundo seria um lugar pior se
nós quatro não estivéssemos
juntos como ainda estamos”.
Infelizmente, o fim dos Bea-
tles confirmado por Paul Mc-
Cartney em 10 de abril de 1970
faz 50 anos. E, sim, ficções à par-
te, o mundo ficou pior sem eles.
Para marcar a data, o Estado
convidou três ficcionistas brasi-
leiros a imaginar como tudo te-
ria acontecido se a banda não
tivesse acabado prestes a lançar
o maravilhoso álbum Let It Be. A
ideia foi inspirada no sucesso do
filme Yesterday, do diretor
Danny Boyle, que recria um
mundo onde os Beatles, diferen-
temente da premissa do Esta-
do, não tivessem existido. Os
premiados Aline Bei, Joca Rei-
ners Terron e Paulo Nogueira to-
param (leia os contos nesta e na
página ao lado).
Segundo os biógrafos e histo-
riadores, os Beatles começaram
mesmo acabar na virada de 1969
para 1970. Os motivos? Nada
muito diferente das motivações
que levam os demais mortais a
romper casamentos, socieda-
des e velhas amizades: raiva, res-
sentimentos, desconfianças,
ciúmes, inveja. A longa relação
entre Lennon e McCartney esta-
va estremecida.
Criador da banda, Lennon sen-
tia-se aprisionado e, ao lado da
mulher, Yoko Ono, queria experi-
mentar novos limites artísticos
sem os parceiros. Muitos atri-
buem ao casal a implosão. Foi
McCartney, no entanto, quem le-
vou a fama porque, ao lançar seu
primeiro álbum solo, em 10 de
abril de 1970, disse que não plane-
java mais trabalhar com Lennon.
Desde então, tudo é história e há
amplo material disponível sobre
o rompimento. Como eles esta-
riam hoje? McCartney e Ringo
Star nós mais ou menos sabe-
mos. Mas sempre tento acredi-
tar que George teria uma saúde
de ferro, Lennon nunca teria mo-
rado no edifício Dakota em NYC
e que o meu filme dos sonhos de
Quentin Tarantino nos mostra-
ria apenas uma maluca ficção.


Os Beatles não param de


evoluir, afirma a autora


Aline Bei, segunda a qual


a banda era o único som


gringo que sua avó ouvia


‘Clouds’ lembra show


no Brasil e novo disco


ILUSTRAÇÃO MARCOS MÜLLER

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C6 Caderno 2 DOMINGO, 15 DE MARÇO DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO

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