(Depoimento de Ringo Starr ao
jornalista Jean-Pierre Norret
para biografia dos Beatles que
permanece inédita; não datado)
O lance da banda não era só
música, não, tá ligado? A turma
também se fazia de ator, curtia
poesia e teatro. E andava meio
cansada de gravar disco e brigar
pra composição entrar nos dis-
co, essas parada. O Paul e o
John é fogo, sempre querem en-
fiar as deles e esquece do Geor-
ge e daí rola aquele climão. So-
bra pra mim, que fico no meio
dessa briga de cachorrão. Bem,
esse foi um dos motivo. O outro
foi o Salinger, tá ligado no J.D.
Salinger, o cara que escreveu
aquele livrinho que tem o Hol-
den Caulfield e depois sumiu,
nunca mais publicou porra ne-
nhuma. Pois foi a Yoko que veio
com as ideia, quem diria, na ver-
dade só podia ser ela mesma,
que curte aquelas parada con-
ceitual mutcho loka. Só que não
dá pra dizer que ela inventou o
lance, ela só se lembrou de um
troço que a gente já tinha feito,
meio de traquinagem, meio a sé-
rio, na época em que viajou pra
Índia pra conhecer o Rajneesh,
tá ligado? Naqueles tempo o
George tava andando com os
maluco do Monty Phyton, acho
que foi o Terry, não o Gilliam, o
Jones, que sugeriu, e se cês man-
dasse uns sósia no lugar, ele dis-
se, assim cês ia ter mais tempo
pra cuidar da vida docês. Foi o
John que me explicou essas pa-
rada de sósia, de duplo, eu nem
sabia que isso existia, o John é
super cabeçudo, né. Daí a gente
fez tipo uma seleção, o pessoal
chamava de casting, e era cada
figura, tudo igualzinho a gente,
parecia que nóis tava passean-
do no museu da madame Tus-
saud. Achar um parecido comi-
go foi difícil, com essa napona
que eu tenho, mas o George, ca-
ramba, acho que o pai dele an-
dou aprontando lá pras banda
de Birmingham, nussa, tinha
uma porrada de cara que era a
fuça cuspida e escarradinha de-
le. Bem, a gente elegeu os mais
parecido, todos assinaram um
contrato super cheio de umas
cláusula pequetita assim que só
de pensar em falar o cara já puxa-
va uma cana, tá ligado. Então os
sósia, que eu chamava de cópia,
foram lá pras Índia gandaiar
com o Rajneesh e aparecer na-
quelas foto fantasiado de ripon-
ga, enquanto nós viajamo pro
Brasil. Foi aí que o John e o Paul
vieram com essas parada de Sa-
linger, tá ligado, a gente andava
pegando umas cachoeira num
lugar chamado Minas ou algo-
que-o-valha, sei lá, era a primei-
ra vez que eu ouvia falar em Bra-
sil, e o John chapadão na ca-
choeira falou, e se a gente largas-
se de mão e viesse morar aqui
no sítio, compor, improvisar
um somzim, fumar palheiro? Só
por curtição, a gente nunca
mais vai lançar um disco. Que
nem o Salinger, tá ligado? O
Paul também tava diboa, pois
até inventou a tal separação da
banda, e depois teve ideia de es-
parramar nossas cópia pelo
mundo, uma cópia do George
com a Pattie num sei onde, ou-
tra do John em Nova York. Eu
acho que essa piração toda foi
por causa dos queijo e dos doce,
pelo menos no começo, o John
tinha uma larica foda, o Paul era
igualzim. Só que isso foi antes
de a gente conhecer a rapaziada
lá, o Milton e tal, e foi daí que
melhorou. Bem, primeiro a gen-
te teve de fazer aquele show lá
em cima do prédio, tava no con-
trato com a gravadora e não deu
pra sair fora. A gente contratou
de novo os cópia que tinham via-
jado pra Índia em nosso lugar e
explicou direitim que daquela
vez o contrato era vitalício, que
um ia ser o John pra sempre, e já
tinha até outra japinha pro lu-
gar da Yoko e tal, eles iam lá,
morar no Dakota. Que azar da
porra daquela cópia do John,
putz, e de novo o Salinger nas
parada. Mas nisso a gente, os
real, já tava morando lá no inte-
riorzim, comendo feijãozim, fu-
mando umzim, diboinha, tá liga-
do, só no sapatim. Noutro dia
pintou aquela moçada que tava
gravando uma bolacha lá em
BH, o Miltim, o Lô (que o Geor-
ge apelidou de Slow, o moleque
vivia chapadão de cogu e era ler-
do demais da conta). Bem, a gen-
te tomou o busão e tocou pra
capital, chegando lá foi pro estú-
dio onde a rapaziada, também
tinha o Waguim e o Tonim, que
tocava uma guita massa, fora o
Betim, que curte uma cachacim
que nem euzim, e nussenhorafe-
maria, aqueles cara mandava
bem demais, e o LP deles era o
chuchu mais chapante da galá-
xia, tá ligado, o Clube da Esqui-
na e tal. A gente até chegou a dar
uns toque, mesmo não precisan-
do, os cara tocava muito, eles
nem aí com nossos pitaco, pois
acharo que nóis era as cópia, e
não os Beatles real, então viraro
nossos mano, nossos parça mes-
mo, e a gente foi ficando em Mi-
nas, foi ficandim, só diboinha,
curtindim um coguzim nas ca-
choeirim, porque com eles num
tinha isso de beatlemaníaco,
não, os cara era gente como a
gente, e depois que aquele lóqui
matou o cópia do John lá em
NY, bem, daí que a gente resol-
veu ficar de vez, e foi bom por
muito tempo, até o George ter
aquela porra de tuberculose,
mas mesmo depois que ele par-
tiu a gente continuou lá no ma-
tim, e o Miltim e o Slowzim sem-
pre pintam lá prum cafezim, e
naquele sitiozim as nuvem é de
queijim, escorre doce-de-leite
das cachoeirim, as árvore é de
tangerina e o céu de goiabada.
Lá a gente é felizim.
No início da travessia, um sol
tipo gema de ovo, embora já bai-
xo, ainda ofuscava. Só uma nu-
vem branca e fofa, em forma de
turbante, pairava num céu esti-
cado que nem a lona de um cir-
co. Depois a nuvem fugiu como
se estivesse atrasada, e o firma-
mento ficou de um negro fuligi-
noso.
Os quatro permaneceram
sentados, equidistantes uns
dos outros. Há meia hora, aqui-
lo era quase tão tranquilo quan-
to um passeio de charrete no Hi-
de Park – agora, o barco de me-
tal prateado empinava e serpen-
teava feito uma enguia.
- Cacete, George, larga esse
remo! – berrou Paul. Quase sur-
do, ele usava um aparelhinho en-
gastado nas orelhas, e tendia a
falar cada vez mais alto, como
se os interlocutores é que fos-
sem duros de ouvido. – Quem
pensa que é? Ben-Hur? Tomou
algum treco, né? - Só um ácido bem basiqui-
nho. E nem vem que não tem,
Paul! Foi Bob Dylan que nos
apresentou à maconha, e hoje
ele é Nobel de literatura.
Antes de zarparem, Paul tira-
ra o motor da cabine e instala-
ra-o na popa. O motor tossira e
pegara na terceira tentativa, e
Paul assumira o leme. A ideia
daquela casquinha de noz fora
dele. Por isso, para John, Paul
estava apenas com vergonha, a
vergonha que uma pessoa sente
quando percebe que correu um
risco idiota, depois de já ter se
arriscado. - Este barco está parecendo
ovos mexidos, Paul! – ironizou
John.
Xi, ruminou Ringo, John que-
brou o tabu: nunca recordar
que o primeiro nome de Yester-
day era Scrumbles Eggs. Credo, o
próprio John estampava de
uma lividez farinácea... Seria
medo de morrer? OK, os olhos
de Lennon também estavam
turvos, mas aquilo era das cata-
ratas, cuja cirurgia ele sempre
adiava. E pensar que nos velhos
tempos John não subia ao palco
de óculos, por pura vaidade.
- Você pode tentar andar so-
bre a água, John! – disse Paul. –
Afinal, é mais famoso que Jesus
Cristo... - Caras, o objetivo dessa jor-
nada é comunhão, não uma DR. - disse George.
- Olha quem fala! – resmun-
gou John. – O primeiro do gru-
po a lançar um álbum solo, com
aqueles indianos pirados. Aliás,
alguém já lhe disse que seu cabe-
lo parece um ninho de cegonha? - Bom, ao menos não está pin-
tado de cor de burro quando fo-
ge, John. - Ao menos é cabelo meu,
George. - John, mas o caçulinha tem
razão! Estamos indo a Leslo pa-
ra viver em paz. Não concluí-
mos que nada resolve: naciona-
lismo, fascismo, comunismo,
religião, dinheiro, fama? - Nosso cemitério de elefan-
tes... - Não, John! Tudo bem, ne-
nhum homem é uma ilha, mas
não somos os quatro mosque-
teiros? - Os mosqueteiros eram três.
- Só no começo. E nós já fo-
mos cinco. - E a ilha custou 90 mil libras.
Em 1967. Já hoje... - Sempre pensando em gra-
na, Paul... - Também penso nos outros,
John. Foi por isso que escrevi
Hei, Jude para seu filho, na
maior fossa porque você chu-
tou a mãe dele.
“Por causa daquele dragão de
Komodo”, pensou George.
“Por causa daquele Godzil-
la”, pensou Ringo. - Se quer saber, John – conti-
nuou Paul –, a compra dessa
ilha foi a única vez que os Bea-
tles ganharam dinheiro com
um negócio. - Só que fomos lá no nosso
iate – disse John. – Com uma
tripulação de oito, incluindo ca-
pitão e um chef. Agora somos os
quatro cavaleiros do Apocalip-
se, remando contra a maré.
O tridente de um relâmpago
rabiscou o horizonte, e um tro-
vão ribombou. Partículas de
água dissolviam-se no ar, im-
pregnando tudo com o odor do
mar – ozonífero, písceo. Soprou
um vento irascível do leste, e pa-
recia que o Egeu se enchia até a
boca, como um jacuzzi a trans-
bordar. - Pessoal, aqui o que não falta
é água para lavar a roupa suja. –
disse Ringo. – Mas é nosso ani-
versário de meio século de re-
conciliação. E a ilha será nossa
nova casa. Ninguém mais vai fa-
lar aquilo que falaram quando
gravamos o álbum Branco:
“Quatro álbuns-solo sob um
mesmo teto”.
George pegou uma cerveja e
deu um gole. Morna. Manchas
hepáticas cobriam a pele da sua
mão. Úmidas, as letras do rótu-
lo escorriam, como uma ma-
quiagem velha. Harrison deu ou-
tro gole e cuspiu na água, onde a
pocinha amarela boiou com re-
flexos opalescentes. O tridente
se transformou no Z do Zorro, e
a abóbada celeste tornou a ru-
far.
“Somos tão diferentes”, pen-
sou Ringo, pela enésima vez.
“Se fôssemos parecidos, tería-
mos sido os Beatles? Ou apenas
como a banda daquele beiçudo
pé-frio?” Disse:
- Quando criança, quase mor-
ri de várias doenças. Ficava em
casa, com este narigão encosta-
do à janela, olhando os navios
que saíam do estaleiro de Liver-
pool, quebrando champanhes
imaginários nos cascos e inven-
tando nomes para eles. Vamos
dar um nome a este barco? - Santa Maria! – exclamou
Paul. - Pequod – murmurou Geor-
ge. - Argo – disse John.
- Arca de Noé! – disse Ringo, e
todos caíram na risada. Cala-
ram-se quando uma alarmante
rajada de vento adernou o barco.
Lennon engoliu em seco. - Éolo é o deus do vento, né?
Lembram quando, em 1963, co-
meçamos a ser paparicados pe-
los intelectuais? Teve aquele
crítico que comparou Not A Se-
cond Time com Mahler, e falou
em “cadências eólicas”. Nunca
me esqueci, porque nunca en-
tendi.
Da camisa, puxou uma gerin-
gonça pouco maior que um ca-
napé. - Tenho mais de mil canções
no meu bolso. Já imaginaram? - E tem os Dadabots – disse
Paul, soturno. – Desde março,
tocam ao vivo no YouTube, 24
horas por dia, 7 dias por sema-
na. Baita façanha. Ou seria, se
fossem uma banda humana, e
não uma rede neural que gera
canções em tempo real.
George chupou um resto de
cerveja do bigode grisalho.
- E tem o Wekinator. Inteli-
gência Artificial. Um software
que aprende com as criações hu-
manas e as ensina ao computa-
dor. Para mim não passa da por-
ra de um karaokê.
Ringo revirou os olhos. - A Warner assinou contrato
com um algoritmo para 20 ál-
buns. Ele cria trilhas sonoras
que correspondem às ativida-
des do ouvinte: trabalhando,
viajando, dormindo.
As ondas agora eram como
mandíbulas arreganhadas, vora-
zes, com caninos brancos de es-
puma. - Acho melhor mudar meu no-
me do barco! – gritou Paul. – Yel-
low Submarine! - Eu também! – disse John. –
Titanic! Não me olhem assim...
No Titanic, a banda continuou
tocando até o fim.
“A vida é complicadíssima.”,
pensou Ringo. “Comparada
com ela, a morte é muito sim-
ples – um interruptor.”
Os quatro ficaram ali para-
dos, como num jardim recém-
plantado depois de uma chuva
tépida. Podiam sentir a vida, si-
lenciosa e invisível.
Barco navega em reminiscências de quatro senhores
Com Paul no leme, John,
Ringo e George celebram
50 anos de reconciliação
em passeio no conto
‘Help’, de Paulo Nogueira
Em ‘Céu de
Goiabada’,
Fab4 vive
em Minas
Joca Reiners Terron põe turma de Liverpool
para morar em sítio perto de Milton e Wagner
‘Abbey
Road’.
George,
Paul, Ringo
e John na
capa do
disco de
1969
Londres. Para Terron, Beatles reais estão no Brasil com o Clube da Esquina
REPRODUÇÃO
DON MCCULLIN
%HermesFileInfo:C-7:20200315:
O ESTADO DE S. PAULO DOMINGO, 15 DE MARÇO DE 2020 Caderno 2 C7