O Estado de São Paulo (2020-03-15)

(Antfer) #1

VERISSIMO


O


galês Dylan Thomas rebe-
lou-se contra a morte imi-
nente do pai, pedindo,
num poema famoso, para ele não
se entregar mansamente à grande
noite, mas rugir, rugir contra o apa-

gar da luz. Ou o apagar da velha cha-
ma, que foi como o Tom Jobim des-
creveu a morte.
*
A velha chama às vezes custa a apa-
gar. Certa vez fui a uma homenagem ao

Jorge Amado, em São Paulo, e descobri
na chegada, que haveria outro homena-
geado na noite: o poeta Menotti del
Picchia. Que eu pensava que não ape-
nas estivesse morto, mas morto há
muito tempo. O velho nunca ficou sa-
bendo quem eu era e por que o abraça-
va com aquela alegria. Nem que meus
parabéns entusiasmados não eram pe-
lo seu prêmio, eram por ele ainda estar
tão inesperadamente vivo, e de pé.
*
Viajando pelo interior da França, pe-
gamos no rádio do carro um programa
só com músicas do Charles Trenet. Jus-
ta homenagem, pensei eu: um progra-

ma inteiro em memória do cantor e
compositor, falecido há quanto tempo
mesmo? No fim do programa entrou
uma entrevista com o próprio Trenet,
ao vivo. Vivíssimo. Não me lembro de
ter notícia da sua morte. O que sugere
que ele ainda pode estar vivo, e cantan-
do Douce France.
*
De vez em quando, levamos esses
sustos, entre enternecedores e horro-
rizados, com a descoberta de que al-
guém que julgávamos morto conti-
nua existindo. O susto se repete prin-
cipalmente com velhos astros de cine-
ma. Alguém sai do túmulo – ou pelo

menos do túmulo em que o coloca-
mos, prematuramente – para rece-
ber um Oscar ou coisa parecida, e
todos têm a oportunidade de dizer
“Não é possível!”.
*
No fim, cada um que nos sur-
preende por ainda não ter partido é
uma vitória do nosso lado: mais um
que sonegamos do adversário. Uma
espécie de ponto que julgávamos
perdido, recuperado. Mais um que
resistiu mais do que imaginávamos,
e não se entregou mansamente à
grande noite. E para quem a velha
chama ainda brilha.

LUIS FERNANDO VERISSIMO ESCREVE
ÀS QUINTAS-FEIRAS E AOS DOMINGOS

Carlos de Oliveira
ESPECIAL PARA O ESTADO


Muito difícil reproduzir o últi-
mo dia dos Beatles. Ao longo de
18 anos de existência (e de ape-
nas 8 de sucesso planetário), a
banda experimentou vários últi-
mos dias. Explica-se: o mesmo
gênio que no dia 6 de julho de
1957 uniu John Lennon e Paul
McCartney, criando a mais ta-
lentosa dupla de compositores
da história do rock, também
plantou entre eles a semente da
disputa, do ego inflado, da dis-
córdia, da raiva e do desenlace.
Para o público externo, os
Beatles, mais do que músicos
competentes, eram ídolos, qua-
tro bons garotos sorridentes do
norte da Inglaterra, companhei-
ros e amigos. Tudo isso foi mais
ou menos verdade até agosto de
1966, quando George Harrison,
John Lennon e Ringo Starr deci-
diram que a banda não mais iria
se apresentar em público. Esta-
vam exaustos. Paul, entusiasta
das excursões, foi voto vencido.
Se antes de 1966 eventuais de-
sentendimentos eram resolvi-
dos com a mediação do empre-
sário Brian Epstein e do produ-
tor George Martin, nos anos se-
guintes o ressentimento pas-
sou a ser um elemento a minar
as relações da banda. Os con-
trastes musicais e pessoais en-
tre Paul e John cresciam. Geor-
ge e Ringo, até então meros
coadjuvantes, passaram a rei-
vindicar mais espaço nos ál-
buns e quase nunca eram atendi-
dos. A soberba imperava. Os
Beatles começavam a acabar.
Como em qualquer relaciona-
mento, nada acaba de repente,
mas no convívio diário, nos pe-
quenos detalhes. Assim, o fim
dos Beatles foi uma longa e tris-
te agonia. Fixar o 10 de abril de
1970 como a data em que a ban-
da se separou é só uma formali-
dade de calendário. Os quatro
músicos ainda experimenta-
riam várias separações.
Naquele 10 de abril de 1970,
numa boa jogada de marketing,
Paul anunciou sua saída dos
Beatles e aproveitou para anun-
ciar o lançamento de seu primei-
ro álbum solo, intitulado Mc-
Cartney. John Lennon não dei-
xou a data passar em branco.
“Tudo não passou de um golpe
de Paul para promover seu dis-
co e ganhar dinheiro.” A relação
azeda entre ambos haveria de
continuar por vários anos, 1975.
É bom lembrar que em setem-
bro de 1969, ou seja, quase sete
meses antes da decisão de Paul,
John anunciara seu “divórcio”
da banda, sendo temporaria-
mente demovido da ideia para
não empanar interesses comer-
ciais do novo empresário da
banda, o nova-iorquino avaren-
to Allen Klein, queridinho de
Lennon, George e Ringo, e desa-
feto figadal de Paul.
Antes disso, em meados de
1968, durante a gravação do Ál-
bum Branco, certo de que o gru-
po estava insatisfeito com seu
desempenho na bateria, Ringo
jogou suas baquetas para o ar e
foi velejar pela costa da Sarde-
nha com o ator Peter Sellers.
Paul assumiu a bateria e Back
in the USSR é prova disso.
Mais: no início de 1969, em ple-
na gravação do álbum Let it Be,
depois de uma discussão com
Paul sobre um lick banal de gui-
tarra, George levantou-se e foi
embora. John foi frio e cruel.
“Dane-se George, vamos cha-
mar Eric Clapton.”
Se for possível traçar uma li-
nha do tempo que explique a se-
paração dos Beatles, o momen-
to zero poderia ser o abandono
das excursões em 1966. Em se-
guida, a morte de Brian Epstein,
descobridor, divulgador, em-
presário e responsável por gerir
a fortuna acumulada pela ban-
da. No dia 27 de agosto de 1967,
aos 32 anos, Epstein morreu de


uma overdose de Carbitol, dro-
ga usada para combater a insô-
nia. Sua morte foi um choque
para os quatro beatles que, de
repente, se viram sozinhos, de-
samparados.
Em fevereiro de 1968, em bus-
ca de paz e de alguma razão para
tocar seus projetos, foram para
Rishikesh, na Índia, meditar no
ashram do guru Maharishi Ma-
hesh Yogi. Paul e Ringo volta-
ram duas semanas depois, de-
sencantados. O guru teria inves-
tido sexualmente contra uma
de suas alunas. George, já bas-
tante envolvido com a cultura
indiana, e John, ficaram por
mais algum tempo. O fato é que
quando os quatro se reuniram
novamente em Londres, já não
eram mais as mesmas pessoas.
A paz perseguida não existia e
passaram a agir aleatoriamen-
te, erraticamente.
Um exemplo: sem qualquer
experiência em negócios, cria-
ram a Apple Corps. Queriam
um estúdio próprio, um espaço
que juntasse música, artes
plásticas, divulgação de novos
talentos e happenings típicos
dos anos 60. Para gerir a empre-
sa, precisavam de um novo em-
presário. Paul, que já namorava
Linda Eastman, optou pelo pai
e pelo irmão dela. John, George

e Ringo optaram por Allen
Klein. Mais discórdia, provavel-
mente a mais nefasta delas.
Com obrigações contratuais
com a EMI, na primavera de
1968 entraram em estúdio para a
gravação do Álbum Branco (“o ál-
bum da tensão”, segundo Paul)
e os egos afloraram ao extremo.
Não eram mais uma banda, mas
quatro músicos preocupados ex-
clusivamente com seu material.
Para complicar a situação, John
introduziu um novo elemento
desagregador nos estúdios de
Abbey Road: Yoko Ono.
Nunca jamais os Beatles ha-
viam permitido a presença de
estranhos em seu ambiente de
trabalho. Dessa vez haveria de
ser diferente. Apoiada por
John, Yoko não apenas se insta-
lou no estúdio, como começou
a dar palpites nas músicas. A
gravação do Álbum Branco foi
marcada pelo desamor, a pon-
to de George e John saírem aos
murros por um pacote de bis-
coitos digestivos.
Os biscoitos eram de George
e Yoko pegou um deles sem au-
torização. Na sala de controle,
George viu a “ousadia” de Yoko
e lançou um alto e sonoro “va-
dia” (slut). Não percebeu que
John estava logo atrás dele. Daí
para os socos foi um pulo. Fo-

ram separados pelos técnicos,
entre eles o engenheiro de som
Geoff Emerick, responsável
por transformar em realidade
as propostas sonoras mais apa-
rentemente descabidas da ban-
da. Vale lembrar que durante as
gravações do mesmo Álbum
Branco, Emerick demitiu-se.
Em janeiro de 1969, apesar
dos pesares, um novo projeto
estava em gestação. A ideia era
ocupar o frio Twickenham
Film Studios e registrar os en-
saios de um novo álbum a ser
chamado Get Back, mas que aca-
bou batizado de Let it Be. O gran
finale seria um show ao vivo já
agendado. Mas o desânimo era
brutal e apenas Paul parecia ter
algum entusiasmo.
“Não sei por que se envolve-
ram nisso se não têm interesse.
Por que vocês estão aqui? Eu es-
tou porque quero fazer um
show, mas não vejo nenhum
apoio.” Se esperava alguma rea-
ção dos outros três, Paul per-
deu seu tempo. Os ensaios,
transformados no filme Let it
Be, foram melancólicos, mas,
de alguma forma, úteis. Possibi-
litaram a última apresentação
pública dos Beatles, no teto do
edifício da Apple, na Saville
Row, em Londres.
Se o Álbum Branco foi o da ten-

são e Let it Be o da indiferença,
Abbey Road foi o canto de um
cisne já rouco e depenado. Para
começar, John desaprovou a
proposta de Paul, que queria
tornar o lado B do disco um
medley, ou seja, um conjunto
de canções sem interrupções
entre elas. Sua vontade foi aten-
dida, sem antes muita discus-
são. John chegou a propor que
suas músicas ocupassem um la-
do do disco e as de Paul, o ou-
tro. Mas havia duas canções
magníficas de George: Some-
thing e Here Comes the Sun.
Por mais que lançassem
balões de ensaios anunciando
separação, os Beatles, de quan-
do em quando, e individualmen-
te, falavam na possibilidade de
voltar a gravar e até mesmo de
se apresentar ao vivo. Puro jogo
de cena. Por trás disso tudo esta-
vam os interesses financeiros
de cada um, seus álbuns solos e a
necessidade de encerrar as ativi-
dades comerciais da Apple, um
voraz sorvedouro de dinheiro.
Em março de 1973, como Paul
queria, John, George e Ringo
romperam contrato com Allen
Klein e moveram ações contra
ele em Londres e Nova York.
Foi o suficiente para que os qua-
tro músicos decidissem coope-
rar com vistas a um verdadeiro
acordo de rompimento.
Em dezembro de 1974, assina-
ram um documento chamado
de Beatle Agreement. A dissolu-
ção formal, jurídica e definitiva
deu-se no dia 9 de janeiro de


  1. Os negócios estavam des-
    feitos. Os Beatles acabavam. O
    sonho também.
    Por mais contraditório que
    possa parecer, a expressão Bea-
    tles 4Ever resiste até hoje, 50
    anos depois daquele simbólico
    10 de abril de 1970. A cada ano
    os Beatles ressurgem em reedi-
    ções de seus discos com novas
    mixagens, em livros, artigos ou
    em efemérides como os 50 anos
    de Sgt. Peppers, sem contar o
    projeto Anthology, nos anos 90.
    Em seus shows, ainda hoje Paul
    revive vários sucessos da ban-
    da. A morte de John (1980) e de
    George (2001) não apagou seus
    legados. E a razão é simples. O
    mundo amava (e ainda ama) os
    Beatles...bem mais do que eles
    próprios se amavam.


A velha chama


Música. Foram várias separações dos Beatles, mas o


momento zero seria o abandono das excursões, em 1966


As muitas


despedidas


JACK MANNING/THE NEW YORK TIMES

APPLE RECORDS

Catarse. Fãs adolescentes e devotas do quarteto ajudaram a cunhar o termo ‘Beatlemania’

O último
show. Em
1969, no
topo do
prédio da
Apple
Records, em
Londres

%HermesFileInfo:C-8:20200315:
C8 Caderno 2 DOMINGO, 15 DE MARÇO DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO

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