O Estado de São Paulo (2020-03-15)

(Antfer) #1

5 LIVROS ESSENCIAIS


SOBRE BEETHOVEN




  1. ‘The Beethoven
    Syndrome’
    Mark E. Bonds mostra
    que Beethoven nos fez
    ouvir a música como
    expressão do autor




  2. ‘Angústia e Triunfo’
    Uma biografia escrita
    por Jan Swafford, que
    também é compositor




  3. ‘A Música e a Vida’
    Lewis Lockwood põe
    a vida de Beethoven em
    seu contexto histórico




  4. ‘Beethoven, um
    Compêndio’
    Reunião de artigos de
    estudiosos organizada
    por Barry Cooper




  5. ‘Guide de la Musique
    de Beethoven’
    Um guia para ouvir
    Beethoven pela biógrafa
    Elizabeth Brisson




João Marcos Coelho ]

A cada mês de janeiro, o portal britânico Bachtrack
publica estatísticas sobre a vida musical do plane-
ta. Em 2019, nos 35 mil concertos espalhados pelo
mundo, Beethoven foi o compositor mais tocado:
13% dos concertos no mundo inteiro foram preen-
chidos com suas obras. Também foi o autor da
obra mais tocada: a Sinfonia Eroica, a terceira, que
dedicou a Napoleão – e depois “desdedicou”, quan-
do Bonaparte autocoroou-se imperador.
Beethoven é figura onipresente e matéria-pri-
ma preferencial da vida musical do planeta há
mais de dois séculos. Músicos, diretores artísticos
de orquestras, dirigentes de instituições musicais


  • todo mundo que atua neste circuito tem por le-
    ma explorar as efemérides, datas re-
    dondas, para alavancar público aos
    concertos e recitais. O que fazer para
    comemorar data redondíssima como
    os 250 anos de seu nascimento?
    Radical, a musicóloga americana An-
    drea Moore fez uma provocação inte-
    ressante em artigo recente publicado
    no jornal Chicago Tribune: propõe
    uma moratória Beethoven em 2020.
    Ou seja, suas obras não frequentariam
    as salas de concerto até dezembro
    próximo. A chiadeira foi enorme, por-
    que a comemoração é importante.
    Não faz mal que ele tenha nascido em
    17 de dezembro: o mundo já deu a largada na tsuna-
    mi de comemorações no segundo semestre do
    ano passado. O problema é que todo projeto esbar-
    ra na falta de novidade: só de integrais das 32 sona-
    tas, pouco mais de dez horas de música, grandes
    pianistas como Igor Levit e Fazil Say já lançaram
    as suas. O pianista russo-israelense Boris Gilt-
    burg, 36 anos, decidido a gravá-las, vem se filman-
    do no ato de aprender, ensaiar e tocar até amadure-
    cer a interpretação das sonatas – e joga no YouTu-
    be em pílulas esse strip-tease musical certamente
    “fake” no qual só os ingênuos acreditam.
    Mais comedido, o quarteto de cordas Ébène, ex-


celente, vem gravando uma integral itinerante, ou
turística, dos quartetos de cordas – outro monu-
mento sem paralelo na história da música, que
reina absoluto no formato dois violinos, viola e
violoncelo. Registra apresentações em Viena, Fila-
délfia, Tóquio, São Paulo (na Sala São Paulo, em
setembro passado), Melbourne, Nairóbi e Paris.
Essa ânsia de se bolar algo novo em torno de um
compositor e obras tão conhecidas está provocan-
do um verdadeiro festival de ideias ridículas que
promete estender-se até dezembro. Uma sacada
absurda viralizou em algumas orquestras euro-
peias. A Sinfônica de Viena, a londrina Philharmo-
nic, o alemão Balthasar-Neumann Ensemble e a
Orquestra da BBC Escocesa vão submeter seus
públicos a um concerto de mais de 4 horas. Por
quê? Para reproduzir fielmente um
concerto de 22 de dezembro de 1808.
Ora, naquele tempo não existia ain-
da o conceito de concerto como o pra-
ticamos hoje. O compositor anuncia-
va no jornal a realização de uma “Aka-
demie” com um punhado de obras no-
vas. Para viabilizá-la, solicitava subs-
crições prévias dos interessados para
pagar o aluguel do teatro, copistas e
músicos. Ninguém permanecia o tem-
po todo nestas academias. Assistia-se
apenas a uma ou outra obra; portanto,
o vaivém era constante na plateia –
imaginem o barulho e a algazarra de
pessoas entrando e saindo.
Bem, neste clima bagunçado inimaginável pra
nós do século 21, Beethoven estreou as seguintes
obras (todas hoje consideradas obras-primas): a
Quinta e a Sexta Sinfonias – a do Destino, sua mais
famosa, e a igualmente célebre Pastoral. Mas teve
mais: o quarto concerto para piano, para muitos o
mais perfeito dos cinco. E a Fantasia Coral opus
80, prefiguração do movimento coral da Nona Sin-
fonia, que só seria composta 16 anos depois, em


  1. Beethoven foi solista no concerto e na Fanta-
    sia – uma de suas últimas apresentações públicas
    ao piano, num momento em que a surdez já lhe era


irremediável. Imaginem que ele ainda literalmen-
te contrabandeou – eram proibidas as execuções
de música sacra em teatros – o Sanctus e o Gloria de
sua Missa em Dó Maior. Mesmo o adorador mais
fanático de Beethoven não suportaria impávido
um banquete musical tão pantagruélico.
A que se deve esta imagem tão poderosa e onipo-
tente de Beethoven nos últimos dois séculos? A
maior parte da enxurrada de novos livros sobre o
compositor repete, recicla, regurgita o tema luta-
sofrimento-glória acerca do compositor heroico
que peitou Napoleão, desdenhou nobres e sofreu
com a surdez. Um desses livros destaca-se, porque
propõe explicar as razões que fazem dele um para-
digma da arte musical. O musicólogo e professor
Mark Evan Bonds, 66 anos, que vem dedicando as
últimas décadas ao estudo do compositor, acaba
de lançar, nos EUA, The Beethoven Syndrome.
A “síndrome” é a tendência de escutar a música
como projeção do eu íntimo do compositor. Esse
novo modo de escuta era radicalmente diferente.
“A música de Beethoven catalisou esta mudança,
mas só podemos perceber isso olhando pelo retro-
visor histórico, porque apenas depois de sua mor-
te os ouvintes começaram a ouvir os composito-
res em geral – e não apenas Beethoven – em suas
obras, sobretudo em sua música instrumental”.
Interessantíssimo, seu livro narra a ascensão,
queda e persistência desse modo de escuta desde
meados do século 18 até a atualidade. Em 1827,
quando morreu, anota Bonds, os contemporâ-
neos de Beethoven tinham escrito tanto sobre
suas obras que uma antologia recente chega a 700
páginas. Mas com um detalhe: “Todas falavam de
suas obras, não dele como pessoa – exceto as do
final de sua vida, quando se tocou no problema da
surdez (...). Resumindo: ninguém, durante a vida
de Beethoven, percebeu sua música como expres-
são do seu eu interior”. Três décadas mais tarde,
em meados do século 19, era comum ouvintes roti-
neiramente escutarem sua música como “revela-
ção de sua alma, e encaravam sua alma, também,
como chave para o entendimento de sua música”.
E isso passou a se aplicar a todos os compositores.
Suas obras instrumentais eram ouvidas como
uma espécie de autobiografia sonora.
Bonds pergunta-se: “Por que se começou a escu-
tar música de modo fundamentalmente diferente
num tão curto espaço de tempo? E por que, por
outro lado, este modo de escuta tornou-se crescen-
temente suspeito nos últimos cem anos? A tendên-
cia de os ouvintes escutarem compositores em
suas músicas – que chamo de ‘síndrome Beetho-
ven’ – está tão profundamente arraigada que é fácil
esquecer como ela era nova e poderosa há apenas
um século. Síndrome aqui é usada para indicar um
padrão de sintomas. Este padrão dominou tam-
bém a crítica musical por um século”.
Entre 1770 e 1830, vida e obra do compositor
eram separadas, porque a expressão musical era
vista como “construção objetiva ou representação
de uma emoção (música instrumental) conscien-
temente elaborada para provocar uma resposta
calculada nos ouvintes”, explica Bonds. Nos 90
anos seguintes, os críticos começaram a “ouvir” a
música instrumental como “manifestação da indi-
vidualidade do compositor”.
Uma tendência que se tornou hegemônica após
a morte de Beethoven. “Os próprios composito-
res”, aponta Bonds, “encorajaram esta percepção,
assumindo a estética da subjetividade em seus es-
critos sobre música e suas estratégias de autopro-
moção junto a um público crescente e um merca-
do competitivo”. Ou seja, assumiram-se como
quintessências do gênio romântico que comparti-
lhava com os demais mortais suas emoções, sofri-
mentos, sua vida mais íntima. Não foi à toa que
Robert Schumann, um dos que mais assumiram a
criação musical como diário confessional, respon-
deu a um amigo que reclamava de não receber
cartas suas: “Basta você ouvir minha música”.
Nos últimos cem anos, essa postura foi recalca-
da em favor da concepção da arte como artifício, e
não confissão, do compositor. “Essa concepção
renovada da expressão como construção objetiva
tornou-se elemento-chave na estética modernis-
ta, começando com a Nova Objetividade no perío-
do entreguerras e no modernismo radical de mea-
dos do século 20”, anota Bonds. No entanto, ele
não deixa de reconhecer que “a inclinação para
ouvir uma obra musical como manifestação audí-
vel do ser essencial do compositor mostrou-se bas-
tante resiliente. A noção de obras como vida conti-
nua a florescer publicamente, particularmente no
domínio da música popular, e permanece desem-
penhando um papel nos modos como escutamos
obras de compositores do passado e do presente”.
O ponto de partida da “síndrome Beethoven”
foi o Testamento de Heiligenstadt, em que o composi-
tor pensou em se suicidar por causa da surdez. Ele
foi escrito em 1802, mas só foi publicado em outu-
bro de 1827, sete meses após sua morte. “A publica-
ção legitimou, num só golpe, a interpretação críti-
ca de toda a sua música como expressão do seu eu
interior. O Testamento mudou o modo como as
plateias ouviam a música de Beethoven. Sua sur-
dez tornou-se a peça central do tropo luta-triunfo
que os ouvintes perceberam em tantas de suas
mais celebradas obras”. A ponto de, em 1828, o
crítico Joseph Fröhlich já ouvir a Nona como sua
“autobiografia escrita com música”. Rapidamen-
te, o público passou a ouvir não uma emoção, mas
a emoção de Beethoven em sua música.
Preparemo-nos. Em 2020, Beethoven estará no-
vamente no primeiro lugar como compositor
mais executado em todo o planeta. E, contamina-
dos pela síndrome Beethoven, continuaremos a
ouvir sua música instrumental, sem palavras, co-
mo “confissão involuntária”, como disse Goethe a
respeito da criação poética.

]
É CRÍTICO MUSICAL E AUTOR DE ‘PENSANDO AS
MÚSICAS NO SÉCULO XXI’ (EDITORA PERSPECTIVA)

Em meio às
comemorações
dos 250 anos do
compositor, um
novo livro tenta
compreender
como sua obra
mudou a forma
de ouvir música
para sempre

A INFLUÊNCIA DE
BEETHOVEN NA ARTE

A música sempre foi
paixão preferencial do
pintor, escultor e artis-
ta gráfico simbolista
Max Klinger (1857-1920).
E seus dois maiores
amores musicais foram
Brahms e Beethoven.
Entre abril e junho de
1902, sua escultura
‘Beethoven’ (acima) ocu-
pou o centro da 4ª expo-
sição dos artistas vie-
nenses (entre Klimt,
Kokoshka e o arquiteto
Olbrich). Na viagem de
Leipzig para Viena, o
artista fez uma parada
em Paris para que Bee-
thoven, esculpido em
mármore, fosse encai-
xado. Como foi exibido,
Beethoven assume a
postura de um Deus. O
Deus da música. /J.M.C.

ODE

A BEETHOVEN PELO


MUNDO

DOS CONCERTOS
TOCARAM OBRAS
DE BEETHOVEN EM
2019 NO MUNDO

13%


Aliás, Música


Alemanha. Piano
que pertenceu a
Beethoven em sua
casa, em Bonn

Imponente. Escultura de Beethoven por Max Klinger feita em ouro, marfim, mármore e pedras semipreciosas em um trono de bronze


LEIPZIG ART MUSEUM

LEON KUEGELER/REUTERS

%HermesFileInfo:E-1:20200315:E1 DOMINGO, 15 DE MARÇO DE 2020 O ESTADO DE S. PAULO

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